quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Papo-cabeça

- Nadadisso!

- Tudodisso!

- Nada disso!

- Tudodisso!

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

∫∂∫∂∫

Já levei cusparada, cervejada e muito tapa na cara.
...
...
Ao menos, roubei beijos de um monte de bocas.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Sobre os Velhos

Desde que cheguei no Rio, uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a quantidade de velhinhos, velhinhos mesmo, andando de um lado para o outro sem qualquer tipo de acompanhante, afirmando dia-a-dia, noite-a-noite, passo-a-passo a sua autonomia. Pelo que tenho notado, a maioria deles são cariocas da gema, moram nos mesmos bairros da infância e parecem acordar dispostos a descobrir uma nova atividade a ser fazer: jogar futebol em Copabana, almoçar em algum restaurante, visitar algum amigo, tomar banho de mar, surfar, buscar os netos no colégio ao anoitecer, caminhar na Lagoa, cair na farra sem pudor. Se tem uma coisa que o Rio de Janeiro tem me ensinado é lidar com meu medo de envelhecer, estou diminuindo a melancolia que depositei nesse processo, a aposentadoria pode, de fato, ser o melhor momento para usufruir do tempo livre. Há uma maturidade diante das 24 horas que só depois dos cinquenta iremos descobrir. A cidade, por sua vez, parece dar sua contrapartida desde que se deu conta do poder aquisitivo desta parcela da população, de modo que é super comum encontrar todo tipo de serviço especializado para a terceira idade: dos bares aos bailes, da yoga ao turismo, do curso de teatro à porra a quatro. Até o sotaque deles é diferente: tem um swing malandro a modo antiga e não abarca o vocabulário baladas-nights-parceiro-cumpadi. Tenho pensado todos os dias nos velhos safados que encontram seus amigos de 40 anos no mesmo boteco que se conheceram.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Regras

Hoje descobri que os integrantes do Comando Vermelho falam "é nois", os do Terceiro Comando "a gente" e que se alguém quebra essa regra básica - regra estúpida - pode terminar em pedaços num lixeiro público de Copacabana. Descobri também que dentro do óbvio envolvimento da polícia no tráfico, não um envolvimento micro, mas num sentido macro, rola uma rede de troca de favores, onde os traficantes pagam mensalidades para que seus morros não sejam visados em ações, ações midiáticas, inclusive, e que seus clientes não levem baculejo após efetuarem suas compras. O mais importante, entretanto, é se dar conta que os policiais não recebem um salário alto o suficiente pra morarem nos prédios do asfalto, na maioria dos casos, terminada a jornada de trabalho, quando tiram o uniforme, guardam os fuzis, desamarram os sapatos, voltam ao aspecto civil de ser, é para o velho morro que precisam voltar.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Compensação 2

Se no primeiro e-mail que mandei para vocês procurei me focar no impacto que a presença dos militares de Realengo me causaram, na agressividade emanada por toda aquela estrutura arcaica, realmente o escrevi sem ter contato algum com a fama que a polícia urbana tem por aqui. Estou com a impressão que simplesmente todos os cariocas têm medo da polícia e, por incrível que pareça, nesse quesito, não importa a cor, a religião, a orientação sexual ou a classe social. Sequer importa a culpa que cada um carrega. De vez em quando escuto falar de alguém que pirou por conta da pressão constante e, de fato, não é muito difícil desenvolver uma síndrome do pânico por aqui. Ariadne até me deu a recomendação de só fumar maconha no morro ou em casa, falou que 'a coisa aqui não é brincadeira', dei pouca importância, admito, também nem estou fumando muito, mas depois que vi várias pessoas comentando no mesmo tom, abaixando a cabeça ao passar de qualquer viatura, entendi a dimensão da coisa. No início, fiquei meio assustado com esse clima velho oeste, mas agora é muito sério, estou de saco cheio desse medo instituído.

Pra vocês terem uma ideia, dia desses, fumando no carro de um dos playboys de Botafogo, passamos numa área militar na Urca e, do nada, um dos caras dentro do carro praticamente começou a chorar. Seu nome é Felipe, ele era instrutor do Detran e nas horas vagas fazia doideiras no trânsito, pega e afins, como metade dos motoristas daqui. Pelo que entendi, ele bateu com o carro duas vezes e em ambas, a conta deu perda total. Ele está passando seus últimos dias na cidade, a família vai mandá-lo para Boston na próxima semana para trabalhar como peão numa obra. Conversamos bastante: ele sempre meio choroso, cabisbaixo, ansioso e eu tocado, por um lado, e afim de escutar boas histórias pelo outro. Desde o último acidente, tenho sérias dúvidas se alguém morreu, ele tem trabalhado insistentemente para mudar seu ritmo de vida e sua personalidade, deixar de ser a figura mais louca da turma, quase um desespero por se tornar careta e conseguir levar uma vida correta. Ele é um cara bom, simpatizei, queria mesmo que se arrumasse nos Estados Unidos, porque se tudo der errado e ele voltar pra cá, o Rio de Janeiro vai devorar ele vivo.

Quanto ao medo no uso de drogas, terminei colocando o assunto com a playboyzada, fazendo uma espécie de comparativo, e a primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato deles desconhecerem a lei do usuário ou, se conheciam, tomavam-na como lenda urbana. O segundo momento foi o choque: eles ficaram boquiabertos quando contei que em Recife, os usuários costumam pegar 50 gramas de uma só vez, que geralmente compram o que vão consumir no mês, que fumam na rua em vários pontos da cidade, que andam com maconha no bolso. Por aqui, alegaram que independentemente da quantidade, um baseado que seja, precisam enfiar na cueca. Calma: tudo bem que o que eles fumam é merda de boi com amônia, mas ao menos arrumaram um jeito de não fumarem pentelho, pois o bagulho vem dentro de um saquinho plástico, daí podem até enfiar no cu de acordo com o grau da mania de perseguição. O fato da polícia tocar terror criou um pânico intensivo em todos os usuários, um número bastante alto diga-se de passagem, e internalizou uma condição de criminoso numa grande parcela da população.

Outro ponto importante é como o uso de drogas está muito distante do consumo sadio, fazendo jus ao retrato de problema de saúde pública que tantas ongs insistem em dar. Não sei se é pela ausência de maconha solta, mas acredito que a junção de 1. opções diversas de drogas + 2. poder aquisitivo bem maior que o nosso resultou numa incógnita trágica-réquiem-para-um-sonho-trainspotting. Fui numa rua que fica na subida do morro, num barzinho que de tarde é mó legal, sinuca, playtime, mas que à noite perde toda sua graça . Quando me dei conta, a rua estava tomada por um bando de viciadões, gente rica, pobre, estudante, executivo, todos com olhos esbugalhados, rondando de um lado para o outro como zumbis, fumando maconha, crack, cheirando cocaína, loló, clorofôrmio, injetando, a porra a quatro. Entre eles, notei uns vendedores e bateu uma raiva do caralho dada a decadência dos clientes. George Romero choraria de prazer se fosse um filme e alguns recifenses não durariam dois dias se entrassem no oba-oba. Desde então, dei um tempo na maconha: tenho a sensação que aqui qualquer besteirinha bonitinha pode virar uma coisa perigosa.

domingo, 10 de dezembro de 2006

Compensação 1

Pode soar muito maniqueísta, mas preciso correr o risco, porque tenho acreditado cada vez mais que no Rio tudo funciona sob uma política de compensação: para cada coisa bonita que vejo, sinto que há uma uma horrível para descobrir. Posso passar muito tempo olhando o Pão de Açúcar, horas sentado no Arpoador, honestamente me emocionar com a beleza dessa cidade e com a valorização dos espaços culturais, mas já não me sinto o turista que goza seus espaços, talha sua redoma estrangeira e ignora todo resto. São 6 horas da manhã e, me desculpem, estou delirando de sono. Vamos lá, no último e-mail que enviei - e esse começo é muito 'e como vimos na última aula' - me centrei apenas na primeira noite por aqui, agora já passaram alguns dias, quase uma semana, e muita coisa aconteceu. Resultado: como nos filmes e livros que tanto gostamos, saltarei no tempo ao bel prazer da hierarquia de minha sonolenta memória.

Pra começar, voltei ao Santa Marta. Depois de todas as visitinhas aos museus, belezas naturais e cinemas tradicionais, marquei de tomar umas cervejas com a minha amiga Ariadne para fugir um pouco do circuito mais-do-mesmo, afinal vou passar um mês por aqui, preciso entrar no ritmo do lugar. Como era esperado, ela queria fumar, eu também, fomos na boca, compramos umas dolinhas e ficamos na pracinha super bonitinha que tinha comentado no e-mail anterior. Então, a boca nada mais é que um mercadinho de drogas, pra chegar lá nem precisa perguntar a ninguém, é só seguir o caminho dos homens-boyzinhos-surfistas-formiguinhas que vai da entrada do morro até a entrada da boca. Lá em cima, você entra na fila, espera a sua vez, diz o que quer, paga e vai embora. É simples, mas não recomendo para os noiados com armas porque fuzil ali é bóia, na linha de frente tem até uma metralhadora que só tinha visto no filme do Rambo.

Mais do que algo pontual como a boca, as milícias ou um assalto aqui e outro ali, o que me incomoda no Rio de Janeiro é como a cidade está excessivamente armada por todos os lados, tenho pensado no impacto de quando acabar a 'paz-armada-guerra-fria' que rege por aqui. Espero estar bem longe. Sim, estávamos na pracinha tomando uma cerveja quando surgiu o rapaz-informante que tinha comentado e fiquei noiando como nos morros há um temor para com as pessoas de fora, possíveis olheiros, os chamados X9 ou 171, nunca lembro qual é qual. Minutos depois, apareceram os comandantes do morro, uns seis ou sete caras, todos sem camisa, alguns com tatuagens por todo corpo, todos com no mínimo dois fuzis e vários revolveres. Sei que era para lembrar de algum filme de máfia, mas terminei lembrando dos toscos de Steven Seagal, apesar de particularmente achar os descamisados super charmosos. Definitivamente não é só por drogas que as bacanas da zona sul vão pagar boquete por ali.

No mais, apesar de ter se criado uma tensão, havia por todos os lados uma compensação: crianças brincando de bola na rua, uns velhinhos jogando gamão, outros tocando samba, uma galera fumando, aquela maresia boa de se ver. Nem acho que seja o modo mais correto, mas querendo ou não, esse pessoal do morro criou uma espécie de contrasociedade, o tal estado paralelo que a mídia tanto alarma, que sobrevive do vício dos clientes ricos, que arranja seus próprios modelos sociais e que se tornou um esquema tão poderoso (ou mais) que qualquer instituição carioca estabilizada. Enxergo esse movimento como uma resposta à desigualdade da cidade, porque se em Recife a gravidade do desigual é imensa, especialmente em bairros como Boa Viagem, no Rio me parece ser oito vezes mais. Não que tenha muita gente fudida fudida, mas é que tem uns ricos muito ricos e toda uma estrutura que os servem, os protegem, os retificam e os adulam. A riqueza em excesso é, para mim, tão agressiva quanto a pobreza em excesso.

Não nos demoramos muito e logo descemos o morro, mas antes rolou o momento figurante-de-cidade-de-deus, quando os traficantes vieram sentar perto da gente, pois tive certeza que a polícia ia subir o morro e só ia dar eu na mira deles. A questão é que terror por terror, por aqui não faz diferença se você está na mira dos supostos mocinhos ou dos supostos ladrões, o bicho pega, como eles costumam dizer por aqui. Ariadne me disse que o chefão que não pode ser nomeado era tímido, que provavelmente ele tinha descido só para vê-la, não trocaram uma palavra, só olhares, uma vibe meio poética e fiquei encantado com o misticismo que criamos diante de tudo que nos é distante. O cara mais temido da região estava ali do meu lado e, olha só, ele era tímido. Desde então, passei dias pensando em como se poderia resolver o problema dessa cidade, como humanizar a marginália sem censurar suas características marcantes, mas mesmo me centrando completamente, não cheguei a conclusão alguma. De fato, minha vontade não passava de uma pretensão barata.

(Continua...)

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Avenida Brasil - Niterói - Morro da Santa Marta

Minha primeira noite no Rio mereceria o espaço de uma semana no diário, no entanto, como preciso correr para as próximas aventuras, serei o mais breve possível dentro da prolixidade que me seduz, ciente de que não conseguirei transmitir, pseudopoético que seja, um décimo do desbunde pelo qual passei. No início tudo ia ser morgado e triste, a programação número 1 consistia em ir para o aniversário de um zé alguém que não conheço numa boate pomposa em Ipanema, Leblon, algo Manoel Carlos companhia ilimitada. Meu nome estava na portaria, a entrada ia ser free, adoro um agrado, mas fiquei me sentindo o playboy-mor quando soube mais ou menos do naipe do lugar e mais ainda quando vi no outro dia na capa do jornalzinho de 50 centavos daqui, que a filha da Glória Pires - o nome me escapou agora - tinha armado um barraco por lá na semana passada. Sempre acreditei que o plus dessas boates era oferecer um pegapacapá entre subcelebridades. Saímos de casa, eu, Carol e Leca. Carol e Leca são garotas zona sul e aqui rola a maior divisão: zona sul, zona sul; zona norte, zona norte; zona oeste, zona oeste. Uma segregação falada, defendida com orgulho e que tem mais a ver com comportamento, acessórios e cabelos tingindos do que necessariamente com ocupação espacial.

A segregação por região comporta uma enorme gama de valores, estereótipos e naturalmente reverbera na predileção por drogas em cada uma das trupes, ou seja, a galerinha que toma ecstasy e drogas sintéticas são zona sul, filhos do asfalto, não perdem uma rave, carregam o sotaque dos mais irritantes e é só tocar no assunto 'baseado', 'lombra' e derivados que começam o maior discurso anti-maconheiros. No mais, constituem a elite afrescalhada que encaixa ou inventa um novo preconceito onde tiver espaço. Da mesma maneira, a galera que só fuma, vive denegrindo a imagem burguesa dos que tomam drogas artificiais, citam alguma matéria do Fantástico sobre tráfico na classe média alta, eventualmente soltam até aquele velho papo da natureza, que fumar maconha é do bem e tal - que bora combinar não faz o menor sentido, porque a maconha daqui é prensada, cheia de amônia e eles sequer sabem o que é uma belota. Quem só cheira não sei o que fala, nem sei que zona ocupa, mas quem usa todo tipo de droga, costuma ficar tão travado que termina por não falar coisa alguma. Obviamente todos os grupos anteriores evitam este último. O apartheid dos usuários não tem nexo algum, é um mela cueca hipócrita dos brabos, porque falando sério, o cara tomar dois ecstasys numa noite e chamar o outro de maconheiro drogado-filho-da-puta-escroto-du-caralho é coisa de gente muito da estúpida. Coisa de carioca zé mané.

Enfim, decidimos passar na casa de uma amiga em comum chamada Ariadne, em Botafogo, antes de irmos pra tal boate em Ipanema. O nome da boate também me escapa e agora pouco importa. Saímos de Realengo e pegamos a famosa Avenida Brasil: pista enorme acometida pelo medo geral dos motoristas que corta boa parte da periferia do Rio de Janeiro. Pode parecer exagero, mas a paranóia carioca se aproxima um pouco da paranóia recifense, essa coisa de ficar olhando para os lados, sempre a espreita que alguém esteja a espreita, tomando providências para a morte não chegar - uma sensação que lembra o protagonista daquele filme, que eu sei que é ruim, mas que simpatizo, chamado Premonição. De fato, a caxangá parece brincadeira perto da Avenida brasil e seus 100 km/h como velocidade mínima. Não existem sinais - é via expressa - e ainda que existissem, aqui no Rio, ninguém liga muito pra sinal não, a maioria dos motoristas ainda não aprendeu o que significa a palavra pedestre e vive no mundo do daltonismo. Atravessar a rua é uma aventura diária. No caminho, no quilômetro sei lá quanto da avenida Brasil, vimos uma moto caída no canto e dois corpos desmaiados (mortos?) distantes um do outro. Ninguém se atrevia a parar pra ajudar pelo medo de serem assaltados. Uma das meninas zona sul sugeriu que poderia ser só fingimento para roubarem o carro. Era impossível. Fiquei com medinho dela.

No final das contas, as pessoas, além do medo óbvio, não param porque ninguém pára, há um sentimento internalizado a partir de uma coletividade, ou melhor, uma negação da coletividade pela falta de atitude generalizada. Pior é que todos andam tão depressa, tão centrados em sair dali o mais rápido possível, que se um parar, provavelmente o que iria acontecer era um acidente. Pouco antes da moto, passamos por um engavetamento de dois caminhões e uns sete/oito carros. Coisa assustadora, cosmopolita demais, me fez sentir um pouquinho caipira que pegou o pau de arara para o sul do país. Seja como for, fiquei incomodado com a indiferença, como aquela moto parecia desimportante até que obtive uma segunda resposta: Carol e Leca alegaram que acidentes de todo tipo ali eram normais, que quando acontecia algo do tipo só as ambulâncias poderiam intervir "e de todo modo eles já deviam estar mortos, pra que se arriscar?". Terminado o veredicto, cantaram juntas a próxima música do CD: me senti a pessoa mais solitária do mundo imaginando os dois corpos sendo atropelados dezenas e dezenas de vezes. Já no final da Avenida, lá pelo quilômetro não sei quanto vezes dois, ao invés de pegar a faixa da direita, Carol ficou na da esquerda e, por não conseguir fazer a transição, terminou tendo de seguir pelo caminho errado, indo em direção a ponte Rio-Niterói.

Fiquei meio boquiaberto com a falta de habilidade automobilística e ainda mais com a famosa construção que liga as cidades vizinhas, nunca tinha me sentindo tão pequeno diante da monstruosidade de uma construção tão ambígua: sentia um peso da história que não interferia na modernidade do aglomerado de concreto e ossos. Fomos até Niterói e voltamos, não cheguei a conhecer a outra cidade, realmente só fomos porque a ponte não tem retorno, quem entra nela tem de seguir até o fim e ainda pagar um pedágio. Fiquei deslumbrado: achei a ponte genial, monstruosa mesmo, o Rio visto dela é lindo. Já perto de Niterói surgem uns estaleiros, umas plataformas, uns navios enormes que em conjunto me lembraram aquelas cenas de filmes de ficção científica quando o diretor quer mostrar todos os efeitos especiais de uma só vez. Achei feio, mas ainda assim conseguiu me deslumbrar ao seu modo, nada perto do Rio de Janeiro: se olhássemos além, víamos os morros na penumbra e iluminados, e ainda mais além, o Cristo sozinho. Entendi melhor a imponência, tanto que senti vontade de filmar a vista da ponte e se não me engano, a lua estava cheia. Ou quase. Ainda bem que eu não tinha uma câmera: esse seria o meu maior clichê, sem dúvida. Tomamos uma cerveja em Niterói, Leca aproveitou para pegar roupa na casa de uma avó e voltamos em seguida. Mais 13km de ponte. Quando finalmente estávamos indo pra Botagofo pelo caminho certo, passamos por uma blitz (é assim, que se escreve?) e esqueci de comentar: minha amiga da direção, além de não saber dirigir muito bem, simplesmente estava sem carteira de motorista. Ok, bateu o medo extremo.

Quando estávamos na frente da viatura, o carro morreu, o farol estava apagado, seguramos o cu, conseguimos passar, de fato se aprende rapidinho a ter muito medo da polícia por aqui. Finalmente chegamos em Botafogo 1 hora e meia depois de ter saído de Realengo. Vontade de escrever um 'UFA' do tamanho do mundo. Carol me deixou na casa de Ariadne, uma amiga olindense, e foi na outra casa dela, em Botafogo mesmo, pra trocar de roupa. Filha de tenente, capitão, coronel, comandante, sei lá, ela nunca poderia sair da casa dos pais com a roupa decotada da 'night', daí sempre saía com uma roupa comportada e depois fazia a transformação da xuxa no caminho. Esse mundo é muito estranho e sendo assim, ela voltaria em alguns minutos. Fiquei lá no apartamento de bobeira. Fumamos um, dois, a maconha daqui tem gosto de merda, resolvemos tomar uma cerveja. Carol ligaria para o celular de Ariadne quando chegasse, daí eu voltaria e seguiria com ela. Tomamos uma. Duas. Três. Quatro. Nada de Carol. Estavámos num boteco de frente pro morro da Santa Marta e até então, foi a visão mais bonita que tive do Rio de Janeiro. Pois é, superou a ponte: o morro lhe suga, todas aquelas luzes emparelhadas com as luzes dos prédios, a verticalidade num modus operandi peculiar, tudo. É difícil de explicar, mas me senti diretamente conectado. Deve ser coisa de nordestino zé mané.

Ariadne ficou insistindo para que eu abandonasse a ideia da boate e fosse com ela subir o morro: era dia do evento maior da região, o Baile Funk. Ela notou que ganhou força no convencimento depois de contar tin tin por tin tin uma dezena de histórias na linha 'minhas-aventuras-sem-noção', um papinho barra pesada da garota de classe média que começa a conviver nos morros do Rio de Janeiro. Só sei que no meio dessas histórias, ela disse que teve um caso recentemente (o mais recente) com um rapaz do Santa Marta. Depois de uns dias, foi presa e descobriu que o tal cara era o chefão-mor do lugar. Ele faz o tipo que não pode ser nomeado que nem Voldemort de Harry Potter. Soube por Ariadne que muita gente envolvida no tráfico nunca desce pro asfalto, alguns só foram na praia quando criança e que isso, serve de motivação para que o Baile seja um evento referência pra todo mundo da cidade. Pareceu-me de uma melancolia enorme, mas pensando no harém que esse chefão e seus comparsas devem ter, a melancolia passou rápido rápido. Nada de Carol. Resolvi tentar ligar pra ela de um orelhão, usando um cartão de Recife, daí não tocou nem duas vezes, ela atendeu puta dizendo que já estava em Ipanema, que tinha ido na casa e esperado um tempão, que tinha ligado e Ariadne não tinha atendido. Por fim, mandou eu pegar um táxi ou estar na casa de Ariadne às 5 horas. Resolvo estar na casa de Ariadne no horário marcado, decido ceder aos convites, saquei que a própria não tinha atendido os telefonemas de propósito e me senti renovado por me deixar levar pelo sentimento forte que tinha batido de cara com o Santa Marta. Logicamente tomei uma lapadinha de cana antes.

Vou ter que resumir porque tenho que sair. O morro é lindo e sei que isso parece papo de antropólogo que vem da Europa estudar os índios. Perdoem-me se for o caso. Logo na subida é cheio de táxis, eles sobem até uma certa altura e trazem a high society carioca que gosta de funk-orige. Depois deste ponto, todos, jogadores de futebol ou não, sobem a pé. Não existem policiais, a segurança é feita pela galera do próprio morro, mas pelo que vi, nem precisava de segurança, foi tudo muito light nesse sentido. Sei que algumas pessoas gelariam ao ver um fuzil, não há esse costume por aí, mas, assim, aqui no rio se você não vê fuzil no morro, vai ver na rua, porque nas viaturas, os policiais andam com as suas armas para fora das janelas. Os seguranças do morro usam umas motos super bonitinhas, meio lambreta, que combinam muito bem com os capacetes meio Hell Angels. Achei bem charmoso. Chegando lá em cima, há uma espécie de praça na frente do galpão do evento, o uso de drogas é completamente liberado, fumei todos, tomei todas, cheirei um pouquinho de loló. Isso tudo com os amigos playboys de Botafogo de Ariadne. Ela conhece gente de todo canto, de toda classe, é do time que usa tudo e não é de zona alguma e o baile funk é muito isso. O espaço é enorme, a galera não pára, a música é safada, vibe funk proibido, tem uma vibração de espírito muito forte. Fiquei meio emocionado de estar ali em alguns momentos. Não é a toa que o morro virou a vedete do audiovisual carioca.

Só sei que, em dado momento, comecei a noiar quando estava dando uma volta dentro do baile, um galpão sem divisória alguma, com Ariadne, pois ela estava super tensa, daí segurou na minha mão e tive certeza que o chefão podia vir aloprar com a minha cara. Ok, sou de áries e o mundo gira em torno do meu umbigo. Obviamente não aconteceu nadica de nada ou não estaria escrevendo aqui. Ele é meio invisível nesses eventos, procura não se expor muito, depois soube que ela só queria saber se o cabra estava vivo e me desculpa, mas essa história de que ela não sabia que ele era O cara é muito princesa da periferia. Totalmente acho que ela sabia. Ainda descobri que por pouco não fui apresentado diretamente a ele, pois um dos caras com quem estávamos, era uma espécie de informante preliminar, fica sacando quem é novo no baile e se chega, tem vários desses, daí ele repassou que eu não era nada de Ariadne, só um amigo de Recife, e de repente tudo melhorou e virei convidado vip. Parece que a avó do que não pode ser nomeado era pernambucana e um dos sonhos dele era visitar Porto de Galinhas. Pois é, muito doido. Só sei que foi bom porque minha nóia passou bonito e me joguei no batidão, comecei a achar que todo mundo estava mais simpático e é isso que o álcool faz com as pessoas. Só fiquei triste quando percebi que os playboys que estavam no morro e moravam em Botafogo não gostavam do morro, algum deles, o que repassa drogas no asfalto, chegou a comentar na descida que era bom aproveitarmos porque o morro ia acabar, a polícia um dia ia invadir e colocar fogo em tudo. Falava com um ar sonhador.

No final das contas, por forças maiores e mesmo eu lembrando da hora marcada, não consegui chegar antes das 6 e meia onde tinha marcado com Carol. A culpa foi de Ariadne, ela mandou eu descer sozinho, não tive coragem, mas isso não vale a pena ser dito porque saí com a certeza de que tinha vivenciado a melhor vibe do Rio de Janeiro. Alguém poderia alegar que passei boa parte da noite com um monte de gente que nunca vi na vida, mas por favor né, eu vim sozinho pro Rio, esse é o tipo de coisa que tem que acontecer e sempre que foi preciso, soube muito bem obrigado me virar na lábia. Liguei pra Carol, que estava na Avenida Brasil, voltando pra Realengo p-u-t-a-d-a-v-i-d-a. Tava muito puta e com toda razão. Decidimos que eu iria pegar o metrô pra Central do Brasil e o trem pra Realengo. Foi o que fiz. Passei numa padaria, comprei uns pães quentes delícia e, antes de ir embora, tenho que dizer que terminar a noite, às 8 da manhã, chegando na Central do Brasil inundada de murmúrios, pra pegar um trem, me deixou relaxado, numa tranquilidade sem igual. Voltei num vagão com poucas pessoas, olhando o cristo e os morros, pensando na vidinha nossa de cada dia e guardando cada segundo no meu baú de memórias. Eventualmente me acometia a noia que quando chegasse em Realengo, alô alô Realengo, Carol ia me por pra fora de casa bonito. Imaginei até minha malas na calçada e todo drama novelesco. Vai saber, melhor cogitar o pior, afinal Carol é garota-zonasul e deve assistir muita novela.

domingo, 3 de dezembro de 2006

Realengo e a Vila Militar

Estou em Realengo. Realengo fica depois da Vila Militar e um pouco antes de Bangu. Foi onde Gil e Caetano estiveram presos no final da década de 60 antes de saírem do país. A Vila Militar é um bairro do tamanho da Boa Vista, uma avenida principal e várias ramificações, onde se amontoam quartéis de todas as instâncias e casarões enormes que servem de residência aos funcionários do exército. Realengo é a extensão disso. Todas as construções datam do século XIX e são uma herança pesada da época em que o Rio era a capital do país. É algo muito, muito gigantesco (e sinceramente, muito bonito), mas pelo que percebi já há algum tempo, o exército não está conseguindo manter o próprio patrimônio que possui, dado o alto custo de preservação que tais construções demandam. Eu não entendo na prática qual a necessidade dessa falsa ostentação, qual a necessidade de se manter vivo todo esse esquema patético. É uma imponência-fake misturada a um orgulho desmedido. Uma decadência tão exposta e uma tentativa tão frustrada de escondê-la. No final das contas, fico martelando na cuca que é tudo dinheiro público e não me venham falar em caso de segurança nacional, por favor. Sem exageros, não é muito difícil se sentir num sombrio 1964 por aqui. Parece muito distante, mas é meio assustador mesmo: vamos na padaria e só vemos fardas e mais fardas, é milico andando armado até os dentes para tudo que é lado. Um bafo de ditadura pode facilmente ser sentido. Parece que uma guerra há de estourar a qualquer momento quando você sabe que não. E sinceramente, eles não estariam preparados. Ainda assim, sentem a necessidade doentia de 'parecer' que 'estariam'. Fiquei esperando a hora de soar o sinal da simulação de ataque aéreo. A maior parábola da vila militar me foi contada por um comandante: na sala da sua casa tinha uma goteira insistente que ele não conseguia vencer, tinha trocado a telha, pintado com tinta especial, mas em poucos meses, a infiltração voltava. Revelou que fazia anos que estava nessa luta e agora tentava se convencer de que era uma batalha perdida. É essa a situação, os milicos não estão ganhando nem das goteiras. Alô, alô Realengo, aquele abraço.

Foi da Vila Militar que roubaram os fuzis que causou todo aquele rebuliço no Rio há uns meses. Foi na Vila Militar que anteontem, por pouco, não roubaram todo o dinheiro destinado ao pagamento dos funcionários (referente ao mês de dezembro + décimo terceiro). Qualquer um que passa por aqui sente algum receio, alguma opressão (e não me falem sobre o uso de arrobas e questão de gênero, por favor). São muitas armas espalhadas em muitas mãos e sempre fico com a pulga atrás da orelha de que as mão são despreparadas e efusivas. Seja como for, qualquer um que passe alguns dias por aqui nota toda vulnerabilidade estrutural que esse sistema possui e o quão hipócrita ele é, especialmente porque se tratando também de um espaço familiar, os filhos dos soldados, tenentes e capitães funcionam um pouco como ruído do estilo de vida que seus pais parecem empreender. O exército está pagando mais do que pode pra esconder que a sua verdadeira batalha é possuir legitimidade de subsistência. Os prédios na Vila Militar estão quase todos muito velhos, acabados, não passam por uma reforma faz tempo. Vários e vários e vários batalhões foram reduzidos, transferidos ou extinguidos. O número de pessoas está diminuindo rapidamente, mas o número de construções continua o mesmo. A cada dia, fica mais difícil eles preservarem a grandiosidade de outrora e naturalmente tornaram-se neuróticos. Pra intensificar a histeria, o entorno da Vila Militar foi tomado nos últimos anos por algumas favelas, chamadas de 'problema' por aqui. Resultado: entupiram vários pontos com Blitz exageradas, correram de lados para lados, temem que os prédios sejam invadidos. Tudo isso não porque a tensão está no ar, mas sim, porque sabem que se isso acontecer, não estarão preparados pra nada. Estão prontos pra guerra invisível que eles próprios criaram e que não podem ganhar. E o medo que eles causam não é nada, perto do medo que eles sentem. E a hipocrisia fica por conta da filha que fala que não vai ao morro, porque não se sente bem cercada por aquelas armas, enquanto o seu pai tira um revolver do bolso e dá dois tiros para cima no dia do seu aniversário. Eu gosto de fumar um cigarro andando pela Vila Militar.