terça-feira, 18 de novembro de 2008

O Cinema Cearense

(Publicado originalmente no Janela Crítica)

I


No último sábado (15), a mostra competitiva nacional, com os programas O Papel da Câmera e Salvar Arquivo, nos atentou para uma nova – e não sei bem o quão nova – e diversa leva de filmes cearenses, algo que boa parte da platéia só havia vislumbrado, anteriormente, através do documentário Sábado à Noite, de Ivo Lopes Araújo. De fato, percebemos a existência de uma movimentação baseada na vontade, mas que não finca seus méritos só pela existência da vontade – o que poderia nos remeter ao vazio cinema 'brodagem' do 'pelo menos estou filmando' – pois os curtas Longa Vida ao Cinema Cearense, dos irmãos Pretti (Luiz e Ricardo) e Jarro de Peixes, de Salomão Santana, expuseram uma complexidade, um aprofundamento e uma distinção de premissas estéticas, se consolidaram como duas das produções mais consistentes do festival até então e, para além disso, firmaram uma posição política convergente do fazer cinematográfico. Os que os diferencia é justamente o que os aproxima.

Passado o estranhamento primeiro – estranhamento causado por uma clara falta de ferramentas nossas – podemos dizer que Jarro de Peixes carrega discretamente duas polêmicas. Por um lado, levanta uma discussão ética quanto à relação que o diretor estabelece com o material de arquivo que usa, afinal parte do público entende seu filme como deboche e, por outro, reacende e dá novo gás a uma discussão já morta e tida como anacrônica no campo cinematográfico, a autoria. Não havia me dado conta o quão controverso poderia ser o trabalho de Salomão para determinados públicos até encontrar e ficar chocado com um comentário, escrito pelo Antônio Paiva Filho, na Revista Moviola. Irei reproduzir para contra-argumentar (e espero que ele não tenha nada contra isso):

“ao ver Jarro de peixes, notamos o seguinte: intervenção nas imagens, de alguma forma? NENHUMA; alguma forma de diálogo com as imagens e entre elas? NENHUMA; alguma informação sobre as pessoas? NENHUMA. Jarro de peixes, se limita a reproduzir, devidamente digitalizado, o vídeo VHS de Miguel Pereira. PARA QUÊ? Por que é que os créditos do filme não são honestos e dizem: “realização: Miguel Pereira? Por que é que Salomão Santana assina a realização de um vídeo feito por outro? Quanto suor, realmente, foi derramado por Salomão Santana para “realizar” este “documentário”? Se a sua resposta, gentil leitor, for NENHUM, porque é uma grossa vigarice, acertou”.

A começar, não entendo como é possível tanto conservadorismo de um espectador diante de uma obra que usa e assume que usa imagens de arquivo para construção de novas narrativas e percepções, afinal a sacada de Salomão se sustenta na transferência de significado daquelas imagens em estado bruto enquanto imagens pessoais para um ambiente público, onde elas ganham outra dimensão mesmo assumindo a estética de captura anterior. Talvez devêssemos nos perguntar mais vezes: o diretor é quem registra ou quem significa? Jarro de Peixes é cinema e só pelo cinema na sala de cinema é que constrói o seu discurso. O uso de imagens de arquivo está muito longe de ser uma trapaça e o pensamento contrário me soa até engraçado, pois termina lançando a esse tipo de proposta, uma polêmica a mais que, pela própria existência do filme, já devia estar superada. Martin Sastre que o diga.

II

Além de Jarro de Peixes, outro destaque cearense se materializa na imagem dos irmãos Pretti, responsáveis em sua carreira por três longas, uma penca de curtas, além de objetos experimentais filmados em celular, todos compartilhados pela premissa de não terem recebido dinheiro de editais ou incentivos públicos. Alguns de seus trabalhos podem ser encontrados no canal deles do youtube. Nesse contexto, o curta 'Longa Vida Ao Cinema Cearense' se mostra inicialmente como uma crítica bem humorada aos meios e vícios do sistema de aprovação de projetos em editais públicos, principalmente a presença rançosa de um regionalismo estéril – o que soa bem irônico e próximo de nossa realidade, em especial na cena em que o garoto com cabeça de Mickey entrega um roteiro aos selecionadores (do que poderia ser a Fundarpe), representados por um cangaceiro, uma mulher fashion-armorial, um executivo e um rapaz sem camisa. Os selecionadores literalmente pesam o roteiro e depois espancam o Mickey. E isso é só a premissa.

A partir daí, a câmera se desvia e a crítica se amplia para além da lógica de financiamento, atingindo os cineastas que almejam seu cinema o vinculando a uma cultura de editais. Os irmãos Pretti mostram que não é preciso. A crítica é dupla. Quem busca financiamento público referenda a lógica sobre o qual ele se sustenta. Longa Vida Ao Cinema Cearense funciona como obra-manifesto, o que na longa cena final da caminhada – quando já não existem mais máscaras de Mickey e sua turma e quando a própria equipe se coloca como parte integrante do caminhar – a expressão que fica é a de uma ruma de jovens marchando pelo tipo de cinema sem dinheiro que fazem, que acreditam e que defendem. O vigor da defesa da idéia é particularmente emocionante. Os irmãos Pretti estão aqui para dizer, resgatando um pouco Paulo Emílio Salles, que dinheiro em si não garante nada e que falta de dinheiro, gerando todas consequências produtivas do subdesenvolvimento, pode nos garantir boas surpresas. Por sinal, outro cearense, Quando Sopra o Vento, de Petrus Cariry, embebido de uma poesia caricata e financiado por edital público confirma perfeitamente isso.

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