sábado, 15 de novembro de 2008

Solidão Pública

(Publicado originalmente no Janela Crítica)

Depois de assistir Solidão Pública pela terceira vez, consegui separar com clareza o que me emociona do que me incomoda no filme de Daniel Aragão. Basicamente a obra me conquista pela idéia matriz de comprar, por três reais, transeuntes comuns de uma praça do centro do Recife para que eles deixem filmar seus rostos – e consequentemente suas expressões, suas personas e até uma interação – diante de uma câmera pelo tempo limite de três minutos. Acho que a proposta funciona tanto como intervenção artística, intervenção que fez parte do SPA das Artes de 2007, como na forma de produto formatado, ou melhor, documentário experimental. Solidão Pública segue a linha de produções contemporâneas que assumem a 'intervenção' para fundamentar a iniciativa documental, como pode ser visto brilhantemente no trio parada dura nacional Serras da Desordem, Santiago e Jogo de Cena. E que fique claro: isso não é uma comparação direta, só um vínculo de intenções. Mas seja como for, Daniel abandona a idéia já mastigada de registrar a movimentação da praça como ela realmente é no dia-a-dia (algo que outra produção da mostra competitiva, Osório, de Heloísa Passos, tenta sem sucesso fazer), para assumir uma escancarada quebra do estado das coisas: só quando finalmente a tenda está armada, o telão montado, o povo amontoado é que ele começa a filmar. Não sei até que medida o segundo produto já estava planejado desde o primeiro, mas, de fato, Solidão Pública enquanto processo saiu do âmbito das artes plásticas para se tornar um pequeno objeto de discurso metalinguístico do documentário. Particularmente gosto destes deslocamentos quando um teor reflexivo permanece em ambos, mas principalmente quando a natureza da reflexão (e emoção) também se desloca e se deriva.

Por outro lado, há um incômodo na obra que anteriormente já me fez detestá-la incondicionalmente. Trata-se do recurso de narração logo no início – sobre a mesma tela branca onde as pessoas depois iriam se sentar diante da câmera – onde o diretor, em off, solta meia dúzia de palavras justificando de forma desnecessária sua idéia. Tal escolha se torna gradualmente redundante, até mesmo didática, na medida que o filme se desenrola, afinal ver e ouvir a idéia desabrochando sozinha me parece muito mais interessante do que tê-la explicitada, a priori, por uma falsa poesia ou uma ironia barata. Queremos o documentário e não uma palestra do porquê do documentário. O problema se torna maior quando depois disso e depois de já termos visto o desabrochar da idéia, a obra apela para outro off, o que me parece ainda pior, pois consolida o diretor como personagem narcisista do filme, algo completamente dispensável.

Por sinal, percebi uma pequena diferença de edição nesta terceira vez, pois ao final, quando vários rostos começam a passar um atrás do outro, num ritmo voraz, o diretor fez a brincadeira sem gracinha de colocar o rosto da namorada no meio da sequência e pior, o dele próprio como imagem final. Eu estava completamente entregue ao filme, ignorando os offs e tudo mais, mas quando vi Daniel Aragão se colocando ali daquela forma tão gratuita, não tive como segurar a risada. Foi uma quebra. Ok, cada um faz o que quiser de seu filme, mas depois desse coito interrompido só tenho a dizer que basta um passo para irmos de uma fábula tocante, de um documentário interventivo com cenas memoráveis, de fotografia impecável e com uma edição de som perspicaz para uma mágica viagem narcisista do incrível “eu”. Às vezes acontece e resulta em experiências profundas, mas nem sempre agradar o ego é a melhor saída.

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