terça-feira, 11 de novembro de 2008

“A vida é como um cigarro. Você tem que fumar até o fim”


A frase acima aparece como último inter-título do filme sobre o qual irei discorrer, mas para voltar à narrativa clássica, vamos começar pelo princípio. Se partíssemos da premissa que todas as pessoas podem ser divididas entre as que nascem com grandeza, as que conquistam a grandeza, as que são encontradas pela grandeza e um grupo a parte, condensado – ou condenado - sob o estigma de serem 'os outros', Harvie Krumpet, personagem que intitula a animação de 2003, vencedora, entre outros prêmios, do oscar de curta animação, seria uma espécie de ideal representativo deste último grupo. A obra dirigida, roteirizada e fotografada pelo australiano Adam Benjamin Elliott, fã assumido do artista tcheco Jan Svankmajer, poderia ser apenas mais uma panorâmica - através de Harvie, um ser feio, magro e careca - da recorrente história do fucking loser: partindo de seu nascimento de cabeça pra baixo, passando pelos obstáculos e humilhações até o clichê da superação final. Harvie Krumpet também é tudo isso. Mas se por um lado há um pessimismo que nos guia, a compensação vem pelo humor atípico e pela beleza de um conhecimento informal - livre da razão, mas inundado de beleza - que pode ser percorrido através dos 'fatos' absurdos ou hilários que o personagem anota e carrega durante toda a vida - desde o dia em que sua mãe analfabeta resolveu lhe ensinar tudo. Provavelmente são nos fatos de Harvie que reside a metáfora da visão de mundo do diretor.

A narrativa solidifica todo entendimento sobre o personagem ao criar uma relação entre o ser fucking loser e o senso de humor suspeito que temos de ter para suportarmos a nossa própria existência fucking loser. É bastante confortável de se identificar, mesmo que não tenhamos apanhado no colégio, nem perdido os pais numa tragédia, nem nunca acreditado que borboletas possuem cheiro de chulé. Podemos fingir e nos sentir muito bem enquanto espectadores. Podemos até criar uma lembrança falsa. A estrutura de Harvie Krumpet segue os trabalhos anteriores de Adam, a trilogia Uncle, Brother e Cousin, onde o narrador assume um papel fundamental na evolução diegética, falando friamente dos acontecimentos mais terríveis e sempre os complementando com um humor negro sagaz. É com tal força abstrata que me identifico. Há uma recorrência explícita nessa obra: os piores acontecimentos na vida de Harvie terminam por levá-lo as suas melhores experiências. Harvie trabalhava no lixão e foi justamente por causa de seu trabalho que encontrou a televisão onde assistiu um filme de Burkley (uma referência direta à Busby Berkeley). Harvie um dia foi parar no hospital, perdeu um testículo, mas encontrou na enfermeira que lhe atendera, a mulher com quem iria se casar. É sempre assim em Harvie Krumpet: um eterno quase suicídio salvo pelo suicídio do outro. A referência final ao cigarro não poderia ser mais pertinente. Cabe como uma luva. Fumemos, então.

Um comentário:

nando disse...

"Podemos até criar uma lembrança falsa." Grande verdade para a postura que o homem está disposto a adotar diante da arte. Curioso que a sonoridade do nome de Harvie lembrou-me de imediato o Harvey Pekar de "O Anti-Herói Americano"; pelo visto a trama só confirmou a lembrança dele, mas peraí! Será que minha lembrança é verdadeira?...