terça-feira, 27 de outubro de 2009

Hedgehog in the Fog, de Yuri Norshten (Rússia, 1975)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Negativos

Às vezes acredito que diversas pessoas com quem partilho meu convívio das idas ao cinema e das conversas de bar se acostumaram - mesmo que neguem duas ou três vezes - a um regime do pessimismo e do olhar agressivo gratuito, o que pode parecer para uma testemunha alheia um pouco de conformismo precipitado e frustração pessoal. Se por um lado, o sucesso de um projeto - e a legitimação coletiva - suplanta temporariamente esse 'pé atrás', pé gangrenado pelas mesmas piadas e preceitos; por outro, serve igualmente no adensamento da pressão negativa sobre projetos futuros. Antes que levantem as plaquetas de "otimista" ou "Polyana", desfaço logo o mal-entendido, primeiro porque me identifico com essa postura inquieta e vislumbro um valor criativo do estado de crise; segundo porque acredito que se tudo vai bem, se apenas os méritos são comentados, se todas as críticas de filmes são positivas e se a cordialidade, enfim, domou as ligações perigosas, é porque de fato há algo de muito errado e medíocre no sistema. Nenhuma realidade pode viver só de elogios. Bauman em seu Em Busca da Política (2000, p. 14) comenta - e eu concordo - que “nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar ou deixa que essa arte caia em desuso pode esperar encontrar repostas para os problemas que a afligem”. No entanto, quando qualquer falha vira motivo de chacota, quando se espera o pior simplesmente por escolha, quando o caráter ranzinza impossibilita os deslumbres, a realidade pode se erguer numa problemática similar a da cordialidade, negando a exatidão e perícia dos olhos de leopardo.

Trata-se afinal de uma preservação do discernimento e do reconhecimento para que se possa 'descer o sarrafo' como gesto de maturidade e sensibilidade e não como mero prazer confuso e inseguro. Os dilemas existenciais nem sempre são vingados por meio da autodefesa fundada na esperar pelo pior - noção teorizada por Freud a partir de entrevistas com veteranos da Primeira Guerra Mundial, cuja conclusão foi a de que quem esteve no conflito esperando pelo pior lidava melhor com os seus traumas, enquanto que quem tinha ido com a esperança de ser mais tranquilo, desenvolvia maiores sequelas. Assim, é caso de não temer as sequelas nem abandonar o espírito crítico. Na incapacidade de distinguir realidades - incapacidade ou conveniência - alguns costumam jogar fora a água suja com o bebê, uma espécie de expectativa negativa sem razão de ser diante do que ainda nem se realizou: seja para com o cineasta que está fazendo seu segundo filme depois do primeiro estrear em Cannes, seja para com o primeiro longa de um cineasta cuja carreira de curtas é bastante festejada ou, por fim, seja para com a perpetuação de festivais recém-nascidos. Comecei a pensar sobre isso hoje, porque senti o peso ao ouvir falarem negativamente da segunda edição do Janela Internacional de Cinema do Recife. Ok, sexta-feira foi um caos no Cinema da Fundação, a festa no sábado só ficou boa depois que superou o conceito festa-fila lá pras das 3 da manhã, o janela crítica está um tédio / fiasco, o janela indiscreta nem comento, mas, ufa, ainda restam os filmes e, esses sim, objetos mais importantes e motivo de toda cruzada, continuam carregando o paradoxo da singularidade e diversidade de maneira bastante sólida.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Um país em uma sala


Os filmes anteriores de Laurent Cantet, Recursos Humanos (1999) com seu delicado ensaio sobre alienação e resistência no contexto de uma fábrica, A Agenda (2001) que desembaraça os medos diante do desemprego, e Em Direção ao Sul (2005) com seu olhar perspicaz sobre o consumo sexual, já anunciavam a maneira sutil como o diretor francês condiciona uma esfera cinematográfica imantada de política, sem necessariamente cair no que se convencionou chamar de filme político. Seguindo essa mesma linhagem, aliás sua carreira é de uma extrema coerência, o diretor realizou Entre os Muros da Escola (2008), vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes e sua produção mais audaciosa, esboçando, por meio da complicada relação entre alunos, professores e instituição educacional, uma parábola sobre as tensões étnicas de seu país, a França. 

Inspirado no livro homônimo de François Bégaudeau, que recria sua própria experiência interpretando o recém contratado e dedicado professor de francês, o filme transporta a França para dentro de uma sala de aula, demonstrando como a nação não consegue lidar com a presença cultural das antigas colônias em seu próprio território e termina reforçando velados parâmetros colonialistas. A França teme se tornar menos francesa com a presença dos imigrantes. Naturalmente, a narrativa desenvolve-se por inteira dentro da escola e em cima de longos diálogos durante nove meses de um ano letivo, onde uma série de disputas culturais são travadas e aprofundadas, ampliando sua potência graças ao “efeito de realidade” presente no improviso dos atores. Abdicando de um roteiro nos moldes tradicionais, Cantet e Bégaudeau estimularam situações para que os jovens pudessem criar suas próprias falas e dessem, assim, autenticidade aos embates. 

Se o clássico conflito entre alunos e professores levanta o debate sobre autoridade, poder e liberdade, o diretor utiliza o microcosmo para deslocar espacialmente esses temas, colocando o macrocosmo em evidência indireta. Nas aulas, o idioma surge como uma fantasmagoria da nacionalidade, uma afirmação de "se querem vir para França precisam primeiro aprender a falar e se comportar como franceses". Aliás, durante as duas horas fica clara também a associação entre disciplina, processo civilizador e domesticação de comportamentos divergentes na película, apontando a maneira racista como o país - via Sarkozy - teme de maneira crescente o efeito da miscigenação sobre a sua cultura. Em uma cena, durante a reunião dos professores, um dos presentes comenta o comportamento dos alunos comparando-os a animais e desnudando em absoluto o discurso colonialista, cujas variadas vestes servem para camuflar uma intensa brigada.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Diacronia / Sincronia

Tenho a tendência de idealizar os meus dias como crônicas, descobrindo em alguma brecha das vinte e quatro horas, um lampejo transcendental que possa carregar comigo para o resto da semana, do ano, quiça da vida. É como se partisse do arbitrário princípio de que os dias futuros são, em parte, constituídos de milésimos de segundo colhidos no percorrer dos dias passados. Por isso, toda vez que me arrisco a planejar os próximos passos, que me lanço num plano de ação a médio prazo, logo me deixo invadir por um sentimento nostálgico: leio posts antigos, descubro blogs abandonados, vejo filmes de infância, relembro bons momentos, mando emails saudosos, volto aos lugares que não frequento mais. Parece um mero tique errante, mas só assim me dou conta como tudo isso me pertence, cada fagulha, fragmento e fratura; redescubro quem eu 'era' / 'sou' 'antes de' / 'sem' conhecer cicrano ou beltrano, mais ou menos o que fala o Henri Lefebvre, em um de seus ensaios sobre o cotidiano e tomando para o lado pessoal, ao afirmar que "a história de um dia engloba a do mundo e a da sociedade". Pensar na vida anterior englobada pelo dia presente e pensar os dias como crônicas a serem descobertas por um olho não dormente, me desperta para um aprendizado eficaz: o de recortar momentos insignificantes para torná-los parábolas existenciais. Vinte quatro horas, vinte quatro anos, vinte e quatro quadros e a experiência me parece dizer que sempre há de chegar o momento em que os milésimos de segundo mostrarão sua exatidão cirúrgica.

Pizza

Daí dia desses fui no centro comprar um livro e um sapato, tava na caxangá dirigindo de boa, quando não mais que de repente passaram umas seis ambulâncias, uma atrás da outra, na maior velocidade, cortando todo mundo, eu, a titia lesma da frente, o cdu várzea lotado. Ambulância sempre me dá uma sensação não só de que a cidade inexplicavelmente acelerou e tudo precisa ser mais rápido, como gera uma maldita internalização de que o caos reina - só que sem raposa, ejaculação de sangue e clitóris da Charlotte Gainsbourg cortado. ok, daí chego no derby, ali na ponte antes da praça, maior trânsito, aquela vibe 'tem-um-acidente-ali-na-frente-e-todo-mundo-ta-parando-pra-olhar', o pessoal do ônibus lotado se espremendo na janela e a fofoca rolando solta. Nessa hora sempre surgem milhares de teorias estúpidas. Passo o cruzamento, tem caídos uma moto dessas de entrega a domicílio com a caixa estourada e um motoqueiro, nenhuma ambulância por perto, um galo da madrugada de pessoas rodeando o coitado no chão. Minha última imagem foi a dele mexendo a perna. Continuei meu caminho, segui minha vida, só que logo na frente, outro trânsito, fiquei puto, xinguei geral, adoro gastar toda minha energia negativa enquanto estou no volante. Daí quando finalmente chego na causa dos carros lentos, tem uma saveiro branca parada e um carro de polícia ao lado, a maior discussão entre o motorista da saveiro e os policiais e o povo do ônibus se espremendo gritando coisas que não conseguia entender. Foi então que passei a saveiro e me senti a pessoa mais feliz do mundo, não porque o trânsito tava liberado na minha frente, mas porque olhei pra trás e vi a cena do dia: o vidro da saveiro estava todo rachado e sobre um amassado central, tinha uma pizza portuguesa toda espragatada. Merecia muito uma foto. Juro que fiquei pensando no cara que pediu a pizza, cogitei até a possibilidade dele ligar reclamando que passou de vinte minutos e que agora deveria ganhar uma pizza de graça. Olha só o que o consumo faz com a gente. Enfim, entrei na conde da boa vista com a sensação de que era possível entender o mundo olhando o conjunto direitinho: uma moto sozinha não fazia sentido, uma saveiro sozinha com uma pizza no vidro também não. Quer dizer, nem tudo fez sentido, afinal, onde foram parar todas as ambulâncias que passaram por mim na caxangá? Parece nada a ver, mas acho que a resposta pode estar escondida naquele seriado, O Reino, do Lars Von Trier.

Nascimento em Paradoxo

Para entender como o estatuto da resistência cultural é vulnerável as vicissitudes e astúcias da lógica capital, podendo tanto assumir uma perspectiva de reforma do circuito cultural como de mera substituição das posições a partir de um refinamento dos mecanismos de dominação, nada melhor que recorrer ao nascimento de Hollywood, indústria cinematográfica mais poderosa e lucrativa da história. Diferentemente do que se supõe e apesar de fruto da corrida pelo progresso, de seu caráter de espetáculo fortalecido na captura do imaginário (XAVIER, 1978), o cinema não nasceu com sua essência costurada por um viés ostensivamente industrial, visão que nos é tão próxima que nos cega pela força do hábito. Não nasceu sendo consumido no seio da elite burguesa que, na segunda metade do século XIX, tinha nos livros, folhetins, teatros, concertos musicais, clubes de campo e esportes seu divertimento seguro e refinado. O cinema nasceu sob a promessa de seu fim, especialmente por não ser vislumbrando enquanto utilidade científica ou econômica aos olhos de seus pioneiros – sujeitos-inventores cujos objetivos pragmáticos estavam em consonância com as diretrizes da racionalidade de uma sociedade capitalista em expansão. Apesar de ter despertado curiosidade nas elites graças ao mero culto ao novo, a curiosidade não persistiu e o cinema foi tomado como passatempo perigoso, especialmente pela película de nitrato ser altamente inflamável, o que causou, entre outros, o “trágico incêndio que irrompeu em 1897 durante uma sessão cinematográfica num Bazar de La Charité, em Paris, e que custou a vida de cerca de 120 pessoas” (ROSENFELD, 2002, p. 67). A maioria pertencente à elite parisiense.

Como fica claro em A História Social do Cinema Americano (1978), de Robert Sklar, o cinema em seus primeiros anos de existência foi tomado como diversão da massa trabalhadora – primeiros espectadores e vigas humanas da construção da sociedade moderna, detentores de uma jornada exorbitante de mais de onze horas de trabalho, “batendo ponto às seis/sete da manhã e saindo às seis/sete da noite, quase não tendo a oportunidade de apreciar a luz do sol fora do serviço” (SKLAR, p. 14). Foi sob o estigma desta escuridão que o cinema se firmou como um pêndulo entre a ciência e o entretenimento: pausando, em seu viés dispositivo, como instrumento técnico que buscava entender o 'tempo' contido no 'movimento' e as características do 'movimento' em si, e assim o foram os experimentos fotográficos com animais e homens de Marey, Muybridge e Friese-Greene; e pausando, em seu viés produto a ser consumido, como entretenimento das classes mais baixas, se implantando inicialmente nos guetos de imigrantes, abrindo espaço entre os cabarés, botequins e sinucas, aparecendo na forma de passagens curtas e pornográficas apreciadas através dos nickelodeons, penny arcades ou nos teatros de vaudeville de bairros operários.
Empresários imigrantes deram com a ideia das penny arcades (centros de diversões em que cada dispositivo de entretenimento custa um pêni), providas de caça níqueis e outros jogos, visores de cartões de mutoscópio e talvez um filme por cinco centavos num canto separado do resto por uma cortina, nos fundos do armazém. Os filmes revelaram-se populares. Os níqueis (moedas de cinco centavos) davam mais lucro do que pennies. De modo que os mesmos homens de negócios empreendedores transformaram armazéns vazios em cinema. Chamavam-se nicolets em uma cidade, nickeldromes em outras, nickelodeons com mais freqüência nas demais. E assim nasceu um vasto público novo de cinema (SKLAR, 1978, p. 26)
Nada mais plausível que o cinema, cujo entendimento se dava essencialmente através da imagem, não da palavra, se tornasse diversão de imigrantes que não falavam e/ou entendiam bem o inglês. Sua popularização se construiu em função de uma demanda social específica, que cabia perfeitamente como veículo de sociabilidade entre indivíduos que se encontravam distantes de sua cidade natal e ocupavam as camadas mais baixas da sociedade. Foram, assim, seguidos padrões de produção e consumo inscritos “numa tradição de cultura não erudita, com base em espetáculos populares de entretenimento e diversão, vindo a coexistir e, muitas vezes, substituir as atrações mais antigas como o circo e o show de variedades” (XAVIER, 1978, p. 26). Sempre que se remonta aos primórdios da imagem em movimento, lembra-se da herança deixada pelos irmãos Lumièrre e pelo ilusionista George Meliès, os primeiros sendo apontados como precursores da representação documental, e o segundo como responsável pelo investida da película no mundo da ficção e do fantástico. Há, entretanto, uma terceira figura que interessa mais ao propósito deste trabalho, especialmente se quisermos entender a maneira pela qual o sistema cinematográfico passou de inarticulado ao status de mercado, se firmando cuidadosamente como um lazer padronizado e organizado para as massas (ROSELFELD, 2002). Seu nome: Thomas Edison.

Reconhecido não só por sua capacidade inventiva, mas por ser criador de entretenimento e empresário de mentalidade imperialista, Edison “zelava com cuidado sua imagem pública” (SKLAR, Idem, p. 49), era o “ícone definitivo do capitalismo empresarial” (JOHNSON, 2001, p. 151) e conseguiu reunir durante sua vida a incrível marca de mais de 1.903 patentes registradas em seu nome – algumas das quais que não foram invenções suas, mas de algum de seus assistentes. No final do século XIX, para além de inventor, ele era um empresário do ramo das invenções e o fazia em larga escala, procurando disponibilizar a maior variedade possível de objetos e atender a diferentes níveis de demanda. Aliás, Edison ficou famoso tanto por criar especulações sobre mercadorias não inventadas para desestimular a concorrência, como por falsificar datas de invenções para reivindicar um pioneirismo. Chegou a anunciar o cinema sonoro antes da virada do século XX.

Sua influência foi imensa: colocou seus funcionários em contato com Muybridge e Marey, conseguindo criar uma o kinetógrafo, câmera, e o kinetoscópio, um projetor capaz de lançar imagens em movimento pela duração máxima de 90 segundos. De fato, seus aparatos de registro e projeção não eram considerados de ponta, o cinematógrafo dos irmãos Lumièrre eram superiores na qualidade do registro e no tempo possível de exibição, pois conseguiam realizar projeções de uma bobina de quinze minutos. No entanto, Edison é reconhecidamente responsável pelo início de uma produção industrial vinculada ao cinema ao promover uma ampla distribuição de suas mercadorias em todo país (EUA). Em abril de 1884, os primeiros 10 kinetoscópios foram usados com propósitos comerciais e até 1900, data em que já estavam completamente ultrapassados, atingiram a marca de 1000. Apenas seis destes restaram até hoje.

Quando seu projetor estava completamente obsoleto e sem força de barganha no mercado de variedades, Edison lançou o vitascópio, uma invenção britânica com a qual teve contato numa de suas viagens pela Europa, mas que, nos Estados Unidos, passou a ser produzida por seus assistentes, teve o nome modificado e foi registrado como invenção sua. Uma das características mais importantes do modelo de negócios proposto pelo empresário era que ele solicitava e revisava pedidos de patentes sucessivamente negados até serem aceitos. Basicamente, se apropriava das invenções de estrangeiros, aproveitando que diversas câmeras e projetores começavam a ser produzidos em diferentes países. A partir daqui podemos vislumbrar sua importância. O passo seguinte era entrar, apoiado por tribunais federais, com processos judiciais contra seus competidores norte-americanos.

Desta forma na metade da primeira década do século XX praticamente todos os envolvidos no ramo cinematográfico estavam subordinados a sua empresa, tendo que pagar por qualquer uso de câmera ou projetor, relação que atingiu o ápice em dezembro de 1908, com a criação da Motion Pictures Patents Company, que agrupava todas as grandes empresas do ramo cinematográfico, tomando como eixo a Edison Trust (SKLAR, 1978). Pouco mais de dez anos após sua invenção, o cinema nos Estados Unidos estava encaixado numa lógica capital que unia de maneira monopolista a produção, distribuição e exibição de filmes em praticamente todo país. O domínio completo do circuito cinematográfico impulsionou o inventor a fazer incursões para outros países. Seu vitascópio, no Brasil, era conhecido como ‘cinematógrafo Edison’ e foi bastante popular em feiras, parques temáticos e circos do Rio de Janeiro e de São Paulo numa época em que, segundo Paulo Emílio Salles, o Brasil importava de tudo, de palito de fósforo a caixão funerário (1996).

De qualquer forma, mesmo diante um circuito cinematográfico abrangente ao ponto de não dar vazão a formas alternativas de economia cultural, indivíduos, especialmente em Nova York, passaram a organizar de maneira autônoma a produção, distribuição e exibição de filmes. Para tanto, usavam de qualquer galpão ou armazém, geralmente no subúrbio, como lugar de projeção e, na maioria dos casos, funcionavam de maneira mambembe, trocando sistematicamente de local, na tentativa de escapar da fiscalização em dois âmbitos. O primeiro com base jurídica, afinal se alguém fosse pego usando sem licença um dos dispositivos patenteados por Edison seria processado, o que se associava à dificuldade em conseguir filmes e do próprio risco de exibi-los. Edison não satisfeito em apenas copiar aparatos inventados por outros, também comprava regularmente filmes de cineastas europeus e lançava-os com crédito próprio no mercado nacional. Há registros de produtores/exibidores independentes que, sozinhos, foram processados 289 vezes em cinco anos (STAPLES, 1973).

Desta forma, se as primeiras salas clandestinas (‘poeiras’) eram invadidas pela polícia por conta da imoralidade dos filmes exibidos, geralmente nudez ou homossexualidade, a fiscalização passou a censurar e confiscar, para além de um sentido moral determinado pelo clero e pelos políticos, os indivíduos que não pagavam a patente ao suposto inventor dos equipamentos. Além da precariedade dos espaços, de uma insalubridade que afugentava a burguesia (MENOTTI, 2007), vivia-se sob o risco de uma batida policial, fazendo com que boa parte dos pequenos empresários desistisse da empreitada. Os endereços dos locais de exibição eram conseguidos pelas autoridades, graças a detetives e mulheres contratados por Edison para se passarem por espectadores ou prostitutas (STAPLES, 1973). Conseguia assim não só criar um clima de filme noir, mas rastrear toda movimentação cinematográfica no submundo das cidades.

Foi a partir dessa situação que os empresários entraram em diálogo com independentes de outras cidades, especialmente Chicago, para tentar montar uma rede de negócios paralela a de Thomas Edison. Simultaneamente, apesar de terem dificuldade em conseguir película virgem (a Eastman Kodak fazia parte do truste), começaram a também produzir seus próprios filmes e como para fazê-los teriam que pagar patente, adquiriram câmeras européias ainda não registradas nacionalmente para fugirem da fiscalização. Os resultados, entretanto, não foram satisfatórios. Uma solução encontrada por um grupo de produtores/exibidores subversivos foi usar equipamentos patenteados, mas usá-los em locações distantes – e nessa busca, a Califórnia se mostrou particularmente atraente por ter sol o ano inteiro, sem as instabilidades climáticas da Flórida ou Cuba, reunindo diferentes cenários: praias, desertos, montanhas. Além disso, Los Angeles e a costa oeste como um todo não sofria tanto com a influência do truste e recebia muitos trabalhadores imigrantes, não sindicalizados, o que criava condições aos produtores de contratar funcionários caracterizados como mão-de-obra barata (SKLAR, 1978).

Portanto, é nesse contexto de domínio e de uma ampla visão econômica do cinema que, entre 1910 e 1913, Hollywood, um distrito dentro de Los Angeles, passou a ser usado como estúdio a céu aberto até ser escolhido como destino definitivo.

Os grandes estúdios – que permanecem os mesmos grandes até hoje – foram fundados por um grupo composto de vários judeus provindos do leste europeu, cansados da disseminação do poder de fogo do monopólio. Entre eles, William Fox; os irmãos Harry, Albert, Sam e Jack Warner; Marcus Loew, Samuel Goldwyn e Louis B. Mayer. O negrito é proposital. Desta forma, se em Nova York esses indivíduos eram símbolos de resistência à opressão das patentes, realizando sessões clandestinas e se posicionando como pioneiros do confronto no circuito audiovisual; se fugiram como independentes, chegaram a Los Angeles não para continuarem a luta contra o truste e estabelecerem um modo alternativo para a indústria nascente, mas para fundarem um novo truste ainda mais poderoso que se apropriasse e ampliasse dos modelos instituídos. Hollywood se fortaleceu usando da repressão que estimulou seu nascimento para se expandir.

A preocupação primordial dos empresários, desde Nova York, era a de elevar o cinema para a classe média e se possível para as elites, sem perder a já conquistada classe operária com a qual possuíam um vínculo antigo, apostando assim na diversidade de produtos, variando na duração dos filmes (curtas, médias e longas) e investindo, seguindo os passos do teatro, na construção do que ficou conhecido anos mais tarde como star system. Não demorou muito até que Hollywood passasse a atrair todo tipo de gente, de magnatas a moças simples do interior, cada qual mais fascinado com a prosperidade do negócio cinematográfico. A Primeira Guerra Mundial foi essencial para a idealização dessa imagem, pois teve papel decisivo no processo de enraizamento dos filmes norte-americanos no mercado internacional. Não só porque o presidente Woodrow Wilson – o mesmo que desmembrou a Motion Pictures Patents Company cancelando suas patentes em 1914, acusando-a de impossibilitar a concorrência – já antevia que ‘onde chegassem os filmes norte-americanos, chegaria a cultura norte-americana’, mas porque o conflito rompeu os elos de dependência entre a Europa e os países periféricos, deixando o caminho mais favorável aos Estados Unidos.
As exportações de filmes norte-americanos subiram de 36 milhões de pés em 1915 para quase 159 milhões em 1916, ou seja, quase cinco vezes mais. Quando a guerra terminou, dizia-se que os Estados Unidos estavam produzindo, aproximadamente, 85% de todos os filmes exibidos no mundo e 98% das películas exibidas na América do Norte (SKLAR, Idem, p. 62-63).
O aumento considerável de capitais transformou o distrito de Hollywood completamente em dez anos, tornando-o um centro produtor organizado, detentor da técnica cinematográfica mais moderna e cujas vias de escoamento poderiam ser ditadas: nos EUA se espalharam os Movie Palaces, luxuosos espaços de exibição capazes de receber mais de 5.000 pagantes, e os países tiveram os seus papéis nitidamente repartidos, de forma que “a divisão entre exportadores e importadores de filmes adquire os contornos gerais de um sistema de relações comerciais, caracterizado pela dominação de um centro exportador sobre uma periferia importadora” (XAVIER, 1978, P. 27). A criação da Motion Pictures Producers and Distributors of America, em 1922, que mudaria de nome para Motion Picture Association of America (MPAA) seguida da instituição da censura moral pelo Código Hays foram decisivos no controle sobre o que poderiam tratar os filmes, sua conduta moral, a forma narrativa pelo qual as histórias deveriam ser contadas, os mercados a serem investidos, o tipo de investimento e até o tempo de duração das obras cinematográficas (em média 120 minutos). O sonho americano começava esboçar sua imagem.

O congregado de empresários que formavam Hollywood seguiu os passos de Edison, fazendo de seus negócios, o principal responsável pelo controle monopolista dos mercados, unindo o poder das grandes produtoras ao um amplo controle da distribuição mundial. Firmava-se, assim, uma dependência e uma distância entre os consumidores e os centros de produção, alastrando a poética-ideológica norte-americana sem deixar brechas para uma mudança nos rumos do audiovisual: “a impregnação do filme americano foi tão geral, ocupou tanto espaço na imaginação coletiva de ocupantes e ocupados, que adquiriu uma qualidade de coisa nossa na linha de que nada nos é estrangeiro, pois tudo o é” (SALLES, 1996, p.93). Portanto, seja pelos blockbusters tradicionais, seja pelos filmes-mundo, seja pelas películas estrategicamente pensadas em nichos, uma gama enorme de nações terminaram reduzidas
a ver dentro de si o enraizamento de um cinema importado e seus representantes, apenas levemente incomodados por uma produção local desprotegida, que atinge diferentes graus de desenvolvimento conforme a época e o país, mas fundamentalmente incapaz de lutar em igualdade de condições com grandes centros, mesmo no âmbito de seus próprios mercados internos (XAVIER, Idem).

Dados

Só para termos uma ideia da situação, no Brasil, segundo dados do IBGE, apenas 8,7% da totalidade de municípios possuem salas de exibição em funcionamento. Se considerarmos apenas os municípios até 20 mil habitantes, que representam 75% do total, esse número é reduzido a 2%. Comparativamente, temos uma sala de cinema para cada 85 mil habitantes, enquanto que os argentinos têm uma para cada 35 mil e os EUA ostentam uma sala para cada 8 mil. Além disso, para termos uma dimensão do que passa nas 2.078 salas de exibição do país (1.244 apenas na região sudeste), segundo o relatório semestral do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, de janeiro a julho de 2009, o cinema norte-americano representou 40% das obras lançadas, o que se concretiza, no entanto, em 82,79% das cópias em circulação. Resultado: 80,56% da ocupação das salas, 75,68% do público pagante e 75,98% da renda são de filmes dos Estados Unidos. Por fim, vale ressaltar que nesse período foram exibidos 382 filmes no país, entretanto, os 12 títulos lançados em mais de 250 salas simultaneamente, os blockbusters, representam 50% do montante do público que foi ao cinema.