sábado, 23 de outubro de 2010

O Estranho Caso de Angélica


Passei a ter a impressão de que a longevidade de Manoel de Oliveira - impressionante, claro - começou a ocupar o espaço dos comentários sobre os seus filmes, quase como se o diretor português tivesse envelhecido cem anos nos últimos dois. Óbvio que não estou criticando ninguém por repentinamente abrir os olhos e ver que o tempo passou, que os cabelos se tornaram brancos, caíram e que os pés continuam firmes, mas é que há um perigo básico nessa recorrência, pois logo logo num circo de atitudes suspensas se perde a fronteira básica entre a premissa do comentário, a amabilidade do reconhecimento e as piadas infelizes. Digo isso porque na sessão em que assisti O Estranho Caso de Angélica (Portugal / Espanha / França / Brasil, 2010), não na abertura da Mostra de SP, dois dias depois, o mestre de cerimônias para justificar a ausência de Oliveira na ocasião - e ter seu momento stand up comedy - disse, entre outros pobres chistes, que, na semana passada, o cineasta colocou um marcapasso e não recebeu autorização do médico para viajar, "mas vocês sabem como ele é, colocou o marcapasso de manhã e já estava trabalhando à tarde". A platéia veio abaixo numa gargalhada daquelas em que se escuta a garganta arranhando, não entendi direito a graça da lorota e tenho minhas dúvidas se já presenciei uma comoção coletiva tão mórbida / estúpida numa sala de exibição, especialmente por ter lido pouco antes uma entrevista recente numa revista especializada em que ao invés de responder sobre seu último filme ou a vasta filmografia, Manoel mais uma vez era só interpelado sobre sua relação com a morte. Fico imaginando, há pelo menos nos últimos trinta anos, a quantidade de vezes e em quantas línguas ele deve ter respondido sobre esse mesmo assunto. Não que os cinéfilos, críticos e afins desejem secretamente sua morte como Capote teve de desejar a de Perry, mas essa situação me lembra um comentário que nem concordo tanto, sou um sujeito que entende as duas dimensões de maneira muito interligada, mas Paul Valéry escreveu certa vez que quando se escolhe falar apenas do poeta e não mais dos poemas, é porque a lógica do sistema literário se inverteu e se esvaziou por completo. Visto por outro ângulo, isso antecipa e retifica o fato de que as práticas da cultura de celebridade - que fundam cada vez mais criativos níveis de subcelebridades - têm se disseminado por todos os campos, inclusive dos circuitos alternativos, da crítica aos espaços acadêmicos, muitas vezes dominando - e sabotando - o plot dos espaços públicos de discussão.

Foi então que, independentemente de estar ao lado de trezentos infelizes (ok, abuso), as luzes se apagaram, assisti ao filme do longevo (sic) diretor português e após a sessão fiquei remoendo a dúvida de não ter gostado tanto assim, remoendo de tal forma que na mesma noite, após uma profunda decupagem pessoal e de assistir Singularidades de uma Rapariga Loira (Portugal / Espanha / França, 2009), tive certeza do contrário. Manoel de Oliveira inscreveu um segmento suave - suave como o rabo de um gato balançando ao vislumbrar um passarinho na gaiola - numa dolorosa tradição de filmes geralmente densos em que personagens adentram numa jornada de adoração / obsessão diante da morte, impossibilidade ou fuga do ser amado - sintoma que, para Jean Baudrillard, tende a revestir objetos e pessoas de um valor excepcional, rompendo as bases, robustas ou não, de qualquer racionalidade. Em O Estranho Caso de Angélica, o amor de Isaac é inventado numa situação pós-morten - ele, um judeu andarilho, é contratado numa noite chuvosa para tirar uma fotografia da personagem título morta e ela sapecamente sorri através da câmera quando finalmente é enquadrada - e a partir daí se desenvolve uma ausência que fortifica a imagem revelada e uma presença fantasmática que se confunde com a existência. Cria-se uma áurea após qualquer experiência traumática de perda do que se ama ou diante da resignação de não poder alcançar, dotando o indivíduo de um medo da aproximação, de passar perto, de ver, sentir o cheiro, ansioso pelo esquecimento, mas caindo no irreversível lembrar e um lembrar cada vez mais intenso. Pode-se procurar a distância como cura, mas sempre correndo o risco de terminar controlado pelo ressentimento, pela amargura, noção que, como escrevi no post anterior, em Hitchcock, Rodrigues e Antonioni ganha contornos sombrios e devastadores, mas que em Oliveira assume um caráter lúdico saltitante. Sua fábula reafirma a leveza e a simplicidade próprias da experiência madura, o que nada tem a ver com cansaço ou desapego, pelo contrário, tem a ver com tranquilidade, doçura, exatidão, com a capacidade de vestir a paranóia mais doida com uma formosa alegria. Assim, atinge o ápice quando o protagonista voa em um sonho, de mãos atadas a de uma fantasma, ambos em preto e branco, num efeito digital que parte em direção ao cinema feito no final do século XIX, início do XX por George Meliès. Parecem passar sorridentes pelos rostos embasbacados de todos nós.

Aliás, para além de apontar e sobrevoar um século, Angélica costura uma ligação parental com o filme anterior de Oliveira, Singularidades de uma Rapariga Loira, inspirado num conto de Eça de Queiroz, em que um rapaz - interpretado pelo mesmo ator da obra mais recente, Ricardo Trêpa (neto de Oliveira) - se apaixona por uma donzela de leque nas mãos com quem troca olhares pela janela. O rapaz encontra a garota, se enamoram, marcam o casamento, ele é expulso de casa pelo tio, precisa viajar para trabalhar, sempre tem pressa para casar, mas logo descobre que havia cometido uma singela falha de percurso: anestesiado pela estonteante beleza, esqueceu de conhecer a rapariga loira para além da imagem que ele próprio, Macário, tinha esculpido idilicamente. Se no passado o rapaz conseguira a mulher que desejara, agora, sozinho, cabisbaixo, viajava de trem para Algarve, arrastando justamente a dor e o peso de tê-la tido ao seu lado e ter sido obrigado a abdicar por conta de um 'imperdoável' hábito descoberto durante a compra das alianças. Ilustrando ambos os filmes através das figuras femininas - e se deixando ilustrar - Manoel de Oliveira ressalta mínimos gestos ingenuamente eróticos e que, talvez por isso, se erguem mais encantadores, graciosos, como um sorriso sapeca na boca de uma morta em Angélica ou um olhar de ressaca numa ninfeta em Rapariga Loira. O universo diegético do diretor português amplia seu charme por meio da confusão temporal na qual se embala, pois não sabemos propriamente 'quando se passa', existem algumas referências recentes em Angélica, a crise econômica, a poluição, mas é como se o encadeamento de elementos "esquecidos" nos planos, os quadros, a mesa, os tapetes, as poltronas, estruturassem um antiquário reunindo e confluindo épocas distantes. Essa dimensão se intensifica graças aos diálogos saídos dos nossos avós, da moral flutuante, do próprio desejo de Isaac - amante das 'coisas antigas' - em retratar homens que aram suas terras com inchadas, não máquinas, procurando resgatar um cotidiano negado até pelos que o ainda compartilham. As fotos reveladas, da Angélica morta e da morte de uma prática, repousam juntas no mesmo varal. Se formos adentrar um pouco pelos bastidores, saberemos que o argumento de Angélica foi escrito ainda no final da década de 40 e o filme parece agregar essa passagem de mais de sessenta anos em seus enquadramentos estáticos, calmos, de quem tem a curiosidade instigante do observar pelo observar.

Em Rapariga Loira, por sua vez, uma das cenas se passa não por acaso num antiquário: plano aberto da porta de entrada, penumbra que torneia a profundidade de campo e detalhes da multiplicidade de objetos postulados sob a astúcia do diálogo de tempos através deles. Seguindo o mesmo caminho, o primeiro encontro com direito a apresentação direta do futuro casal acontece numa sala de estar suntuosa em que cada canto parece saído de um ano diferente da Era Moderna - incluindo os próprios rituais, as condutas, a leitura do poema, os figurinos, a mulher tocando harpa, a cortina da época de Goethe, os sapatos engraxados, o leque oriental da rapariga loira. O anacronismo afetivo e delicado de Oliveira nos concede a chance de nos desapegarmos e formalizarmos o não pertencimento exclusivo a uma única geração, a um bojo de referências restritas, nos revestindo de uma fluidez ao ponto de desenvolvermos (ou cortarmos) fios umbilicais com autores e épocas que não as contíguas ou infantis, libertando alegremente nossos desejos no vasto campo das idiossincrasias da história da humanidade. Manoel de Oliveira se espalha nos últimos cem anos e ultrapassa, não se rendendo a um delírio megalômano, mas artesanalmente costurando uma caixinha de imagens muito delicada. A semelhança entre os dois filmes também se revela em suas pausas através de idênticos planos da cidade, aparecendo sempre em sequência, cuja única mudança é a passagem de dia para noite e vice-versa: a separação dos tons é usada para adentrar em extremos da alucinação em Angélica e da obsessão em Rapariga Loira. Se de manhã, Isaac / Macário tira foto, toma café, pensa, trabalha, flerta, se espreguiça, à noite tem pesadelos, cultiva olheiras, vive num quarto verde minúsculo, preocupa-se, frequenta saraus, jogatinas, voa pela cidade segurando a mão de uma fantasma. Seja como for, depois da redundância sobre a morte ou a velhice diante da textura das imagens, depois dos espectadores forçarem suas gargantas em risadas secas, tuberculosas e irrelevantes, e antes que Alberto Caeiro apague as velas num jogo de cartas com um chinês, termino essa bagatela com uma das primeira frases de Rapariga Loira, dita por um narrador bastante discreto: "o que não contas a tua mulher, o que não contas a um amigo, contas a um estranho". Sempre que viajo, vejo filmes, leio livros - ou bebo uma cerveja com, pasmem, um desconhecido na cidade natal - tenho mais e mais certeza absoluta disso.

Ausência

Como não consegui encaixar esse parágrafo no texto seguinte, decidi publicá-lo como uma espécie de prólogo diletante, afinal durante os minutos de decomposição da dúvida, do quase não gostar de O Estranho Caso de Angélica (Portugal / Espanha / França / Brasil, 2010), de Manoel de Oliveira, lembrei como numa tempestade de ideias de três filmes com estratégias narrativas bem distintas na contemplação da ausência. Todos, entretanto, sem qualquer resquício da suavidade e leveza proeminentes na obra do diretor português. O primeiro foi A Aventura (Itália, 1960), de Antonioni. Revisto antes de ontem, vaiado pelos espectadores de Cannes e usado repetidas vezes para exaltar características do cinema moderno, o filme começa acompanhando um mulher angustiada - discordante do pai e insatisfeita com o namorado - até seu desaparecimento, ainda nos trinta minutos iniciais, durante um passeio em uma pequena ilha do mediterrâneo. A partir desse acontecimento misterioso se desenvolve uma aproximação amorosa entre seu namorado e sua melhor amiga, a aproximação, no entanto, vai se entrelaçando à medida que procuram pela protagonista, ambos cada vez mais diminutos na vastidão das paisagens, onde a maioria dos diálogos recupera a ausência da amiga/amante e transborda um imenso sentimento de culpa. Continuam a procura mesmo inundados pelo desejo - e vergonha - do não retorno, temendo o encontro primevo e no último plano, naqueles três segundos em que você imagina todas as formas como poderia terminar e escolhe sua preferida, tive quebradas minhas expectativas - e minhas pernas - com o gesto sutil de uma mão feminina alisando a cabeça do rapaz. O segundo foi o recente Odete (Portugal, 2005), do também diretor português (não tão longevo e não tão inventivo, desculpem) João Pedro Rodrigues, em que um garoto morre num acidente de carro e desperta o cruzamento de obsessões entre o seu namorado e uma vizinha com quem não tinha contato, mas que, ao saber do acontecido, embarca num relacionamento prévio inexistente que desemboca numa gravidez psicológica. A ausência e carência fazem do luto, não um silêncio guardado, mas um culto radical ao falecido, uma dança de corpos cada qual com um desespero ardil. Se de fato toda estranheza do argumento está mal servida num encadeamento convencional, se os atores são sofríveis, a superestima não passa de uma árvore de natal, ainda assim temos um resultado belíssimo na última cena: depois da gravidez ser desmascarada, a garota passa a se identificar de maneira corpórea com o morto, veste suas roupas, tenta se transmutar nele ao ponto de simular uma transa - ela sendo ativa - com o namorado sob o cândido olhar do fantasma. Por fim, o último filme lembrado é provavelmente a obra-prima dessa linhagem: Rebecca (1940), primeiro trabalho norte-americano de Alfred Hitchcock e referência maior a todos os casais que precisam lidar com a esfera da lembrança, da impossibilidade do esquecimento - e das comparações - de ex-parceiros de seus atuais amantes. Depois de Rebecca, dessa ausência tenebrosa que paira do lado de fora do quarto, pura fantasmagoria que se confunde com materialidade, aprendemos a guardar carinhosamente todas as comparações positivas com o passado, certos de estarmos preparados para o dia em que encontraremos embaixo do tapete, escondida num porão, a coleção das negativas acumuladas por anos.

sábado, 16 de outubro de 2010

a guerra acabou

Se todos os filmes carregam o tempo histórico do momento em que foram feitos, Alemanha Ano Zero (1948), de Roberto Rossellini - ao perpetuar a Berlim arruinada do pós-guerra e o espírito desamparado de uma época - talvez carregue um pouquinho mais.


sexta-feira, 15 de outubro de 2010

História Sem Fim

Espero que ninguém chegue com o diagnóstico: acho foda que às vezes boto na cabeça uma desconfiança, invento uma série de provas invisíveis, alguns amigos negam de pés juntos, escuto com olhos humildes e carinhosos, mas no final das contas, tenho de dizer que pouco importa o que digam, termino confiando mesmo na minha imaginação.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Caderno Antigo

Nada mais rebeldia adolescente que Nirvana escrito com 'a' de anarquismo, Beatles espalhados por todos os lados, todas as matérias, todos os horários, recados pelo meio, recados apagados, errorex seco e velho dando sentido duplo a mil e um comentários. Nunca fui de prestar muita atenção nas aulas de química do professor pardal e seu mundinho de cabritas no cio, balanceamento pelo método da oxirredução, definição de ácido, básico, neutro, pontos de fusão e ebulição: costumava intercalar cada cadeia de carbono com um punhado de poemas encantados e intermediar a cisão heterolítica com uma cesta de bolinhas de papel. Não sei bem como mantinha o ritmo, mas ao invés de estudar geometria, escrevia dezenas de contos onde a exacerbada atmosfera heterossexual - das brincadeirinhas, da brodagem, da cachaça - era usada para despertar enrustidas fagulhas de homoerotismo. Tudo se resumia a uma privada vomitada e a uma vontade interminável de fazer sexo. Era bem o clima nascente - entre a descoberta e o abandono - do primeiro semestre de 2001. Ainda mantinha o fascínio infantil pela Segunda Guerra, às vezes nos sonhos encarnava o herói e, numa Itália que pendia entre a imponência histórica e a tagarelice Terra Nostra, terminava salvando os amigos de trincheiras, atentados e bombardeios: atravessávamos com garrafas de vinho os becos de Nápoles e ouvíamos os gritos femininos sobre os varais de novela. No entanto, não tratava-se apenas de um fascínio lúdico, também tinha lá sua aspereza metodológica: montava cronogramas, dados e fichamentos, a Alemanha e seus 12 mil aviões de guerra, sendo 6 mil de primeira linha, via a Luftwaffe sobrevoando Londres, a vingança dos aliados na destruição de Dresden, mortos e mais mortos na Polônia; imaginava a tensão dos britânicos e americanos desembarcando numa França de orgulho remoído, pára-quedistas vivos, o general raposa do deserto no norte da África, frotas construídas e destruídas, toneladas de ferro contorcido todos os dias. Talvez aos dezesseis anos tenha escrito meu último poeminha de amor: desde então, toda vontade silencia-se em cartas e e-mails melancólicos. Não era muito bom em física e isso é óbvio: cinemática vetorial, eletrostática, deixei de entender matemática quando chegamos à função polinominal do segundo grau, não fazia ideia do que eram zeros ou raízes de uma função quadrática. Sou dos que nunca chegaram perto de aprender logaritmo.

Entre uma piadinha e outra, entre organizar e desfazer o clubinho de xadrez, até que prestava atenção nas aulas de literatura e, com todo clichê de 'garotinho de bagunça', odiava a primeira geração romântica, José de Alencar, Gonçalves Dias, vivia de riscar bancas fazendo 'trocadalhos do carilho' com seus pobres versos sobre palmeiras e índios. Depois ia na biblioteca, onde costumava passar alguns recreios conversando com a bibliotecária, e roubava Noite na Taverna, um livro de poesia concreta e dois ou três sobre a Segunda Guerra. O Ensino Médio era mesmo um arrastão de aulas desesperadas, três matemáticas, duas geografias, duas químicas, sei lá quantas físicas, professor de biologia cantando música-decoreba, redação, interpretação, gramática, classificação do sujeito, sujeito indeterminado, sujeito implícito e a professora de português fazendo a putinha com seus vestidos cada vez mais curtos. Pior que no meio disso tudo, batia a vontade sincera de estudar sobre a história da Rússia, da época czarista aos mencheviques, para poder, enfim, entender a formação dos sovietes. Essa ânsia vinha desde a sétima série, as coisas começaram a dar errado quando Stálin subiu ao poder, sacramentando a impossibilidade de eu chegar ao fim dos contos infinitos. Inúmeros envolviam grupinhos rebeldes - triângulos amorosos - durante a ditadura, brotando de toda minha pós-memória e exercitando a nostalgia pelo que não vivi. Misturava minha vida com a dos pichadores punidos pelos milicos de bigode, torturas num mundo de colégios internos violentamente religiosos, emboscadas de capatazes que usavam de chicotes em salas com correntes, uma verdadeira paródia de O Ateneu pra quem tinha assistido há pouco tempo O que é isso companheiro. Seja como for, realmente foi uma sorte danada eu não ter me tornado um psicopata dos bons, porque desenvolver um infográfico com cotação dos amigos da várzea só pode ser a prova viva que estava prontamente no caminho. Subdividia todos em categorias numa atitude assustadoramente racional. Contudo, para atingir o sétimo sentido do cosmo, o batido CD vermelho só com as músicas number 1 dos beatles me ensinava sobre a eterna vontade de estar longe-perto perto-longe dos amigos. As contracapas dos cadernos antigos deixam claro que - na capa tinha Daniella Sarahyba mostrando a barriguinha - foi em 2001 que comecei a acreditar que a psicodelia poderia salvar o mundo. Dali pro hotmail devem ter sido cinco passos.

Definitivamente não me interessava por História do Brasil, menos ainda pela península ibérica, sou Almeida, mas pouco me importava com os mouros, califas, preferia delirar com as cidades de Antuérpia, Veneza e Gênova no início da Idade Moderna ou mesmo Atenas e Roma na Idade Antiga. Torcia pela Itália nos campeonatos só por ser um país de beleza e quando os professores começavam a falar sobre a América, batia o tédio, decidia gazear, não entendia a relevância da conversa de índio, bocejava com a vingança da antropologia. Enquanto isso, escrevia mais contos. Inventava dois irmãos gêmeos, um judeu e um nazista, criando um melodrama da falta de noção levemente incestuoso. Sempre adorei Éramos seis e simpatizava com Biologia até estudar o corpo humano, reprodução, escroto, frênulo, grandes e pequenos lábios, um mar de espermatozóides. Certa vez fiz um desenho genial de um coração pulsando. Sunshine, sins and flowers - algumas lembranças hão de ficar sem tradução. Uma amigo vivia dizendo que eu devia acabar com minha pose de presidente da Academia Brasileira de Letras, mas não me continha e, quando possível, corrigia todos os erros do professor de História Geral que ensinava processos através de subtópicos. Socialismo utópico, científico, unificação da Itália. Vivia enxergando os camisas vermelhas conquistando o sul ao som de A Day in the Life. Entre as aulas da Primeira Guerra e da Revolução Russa, descobria uma pirâmide social onde os mujiques se escondiam lá no fundo. Cultivei uma obsessão pelos domínios sangrentos, por cada guerra ou batalha da humanidade, pela ânsia de inventar armas, desde as guerras médicas, do peloponeso, sonhava com a destruição de Cartago. Quando descobri na Barsa que a Guerra dos Cem Anos tinha durado cento e dezesseis deixei de acreditar em muita coisa, mas continuava a odiar Nero todos os dias pela petulância de colocar fogo em Roma. As amigas riscavam os cadernos dia sim e dia não. Cyba. R.P.N. Rebeka. Ana p. Ana c. Um desenho de raposão. O tico e teco de Maíra prontos para não funcionarem. Entre cada bloco de matéria era possível encontrar curiosidades de StarWars, uma cronologia maluca da família Skywalker, sugestões de filmes entre os filmes existentes. Nas duas últimas folhas, todos os livros do primeiro e segundo anos da Escola de Magia de Hogwarts, com a relação de cada professor e a disciplina correspondente. Minha barba era uma rala barbicha e ainda escrevia fugir-de-casa com j.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Sobre a ditadura

Há quase um mês, entrei com bom humor no facebook - o que é bem raro numa manhã tão quente - e a primeira coisa que apareceu no meu mural foi um comentário de um cineasta pernambucano mais famoso pelas festas que pelos filmes, que, aproveitando de sua imensa sabedoria, compartilhou um raio de ignorância entre os seus colegas: "Pensando bem até que os tempos da ditadura não eram tão mal assim: os músicos faziam músicas melhores e mais ousadas, o cinema brasileiro tava no auge da devasidão pornochancheira, tinha emprego pra todo mundo e ainda torturavam um monte de gente chata, pseudo-intelectual. O Brasil hj tá chato, careta, pseudo-democrático e o povo sem atitude". Daí foi aquela coisa da província virtual, rolou a polêmica básica, cada um que soltasse sua demência política, fiquei particularmente puto, estragou meu dia, mas respirei fundo e conclui que o melhor, naquele momento e espaço, era ignorar. Por um lado até entendo o sentimento de vazio e o desencanto reativo que ele quis expressar, quase concordo com o discurso arranhado sobre uma democracia cambaleante, na pior das circunstâncias escreveria isso no auge dos meus 17 anos cansado de escutar as peripécias revolucionárias dos meus pais. No entanto, não resta dúvida que o cineasta mais famoso pelas festas que pelos filmes e descendente da cultura latifundiária não possui o mínimo discernimento da dimensão do que estava defendendo, encarnava nada menos que a equação de primeiro grau que interliga a sensação de impotência à síndrome do descontentamento, resultante de um olhar completamente raso sobre a realidade. Alguns tentaram dar uma dimensão histórica baseada em experiências do regime brasileiro, sumiço de pessoas, os filmes retalhados, arquivados, censurados, mas fui lendo comentário a comentário absolutamente certo de que nenhum conseguiria fazê-lo compreender. Pelo contrário, faria com que no ápice de sua soberba e vaidade, se achasse cada vez mais um cineasta bem esperto. Daí tive uma ideia simples que só materializo aqui: pensei em atualizar para a sua vidinha burguesa e artística, o dia-a-dia do 'cinema é uma loucura' como diria a menina da falsa entrevista, pedindo para ele imaginar uma ditadura em que os militares dessem choque no ovo de quem fazia filme ruim. Com certeza o cu dele ia ser o primeiro a tremer.