sábado, 31 de dezembro de 2011

Jurando de mindinho

(Publicado originalmente no Filmologia)
- Você jura?
- Sim, eu juro.
- Pelo nome de sua mãe?
- Sim.
- Mesmo que ela vá para o inferno porque você mentiu?
- Sim, eu juro.
- Jura de mindinho?
- Juro de mindinho.

Sempre que voltamos aos filmes da infância, corremos o risco de, em menos de duas horas, sabotarmos em definitivo um carinho mantido seguro por anos, de maneira que precisamos antes de partir nessa jornada de redescoberta e decepção, cartografando os fios imaginários que ainda nos ligam às crostas da primeira idade, sermos suficientemente sensatos no momento de distinguir entre os baús que devem ser remexidos daqueles que permanecerão intocados. De uma forma ou de outra, é bom lembrarmos que existem as produções imponentes, que podem ser vistas e revistas sem perdas sensíveis no panteão, assim como as que funcionam melhor enquanto lembrança, como se estivessem destinadas ao timing exato de serem assistidas em determinada idade, na situação específica da Sessão da Tarde, com aquela bela fadiga pós-almoço, esparramados no sofá, vestindo a farda gasta e rabugenta da escola que só iríamos tirar no final da tarde, depois do terceiro ou quarto grito de nossas mães. Há, no entanto, uma terceira variação: são os filmes que continuam amados, mas cuja condição de amor depende exclusivamente do fato de terem sido importantes durante a infância, como se o princípio de prazer fosse baseado na emulação de uma espectatorialidade perdida, gerando a partir da impossibilidade de resgate um saudosismo tão intenso que é capaz de transcender, aproximar e afetar idiossincrasias temporais.

Não sei bem porque comecei esse texto como se precisasse me desculpar, afinal de contas, estamos num terreno plenamente seguro, não posso garantir uma longa meditação esquadrinhando plano a plano de Conta Comigo (EUA, 1986), mas ao menos posso dizer sem medo, antes de todos os movimentos escorregadios e secundários, que esse é nada mais, nada menos que o “meu filme predileto sobre infância” e também “o filme predileto da minha infância”, além de que, junto a Cavaleiros do Zodíaco, é o responsável oficial pelo meu entendimento até hoje do que significa amizade. Toda vez que vejo, revejo, prevejo, cada sinal do mundo que ele aponta se transforma naturalmente numa potencial lembrança, adaptando uma marca definitiva da novela que serviu de inspiração, O Corpo, de Stephen King, que possui uma estrutura propicia a, adultos ou crianças, nos encharcarmos na melancolia, seja porque o tempo passou, seja porque o tempo está para passar. É quase como se a vida acontecesse apenas aos doze anos, que num minuto estávamos vivendo, aprontando, sendo protagonistas, e no minuto seguinte passamos ao posto de meros observadores. Assisto ao filme inteiro com os olhos marejados, cada miudeza abre um universo de recordações, basta dois amigos andarem lado a lado e um deles dar um chute na bunda do outro pelas costas ou um desentendimento cujas as pazes são firmadas jurando, jurando, jurando de mindinho.

O meu fascínio por Conta Comigo, ontem e hoje, decorre racionalmente de dois motivos. O primeiro é o absoluto e singelo clima de fraternidade entre os quatro protagonistas, naquela linha bem cafona – aliás, é final de ano, é a temporada oficial da cafonice – de pensar os nossos amigos mais próximos como a família que nos deparamos no mundo e trazemos para perto da gente, pessoas com as quais compartilhamos vivências porque entendemos que as vivências só adquirem sentido se compartilhadas. Nesse contexto, estamos sempre brigando e fazendo as pazes, tirando onda de qualquer besteira, debochando, falando da mãe, batendo frio na barriga, precisando de um ombro firme, dando foras entediados (“ha-ha, muito engraçado, só que eu esqueci de rir”), rindo do que os outros falam sem clima constrangedor, na maioria das vezes seguindo uma espécie de rodízio, todo algoz encontra seu dia de vítima, onde num segundo de descuido, dois ou três se juntam para achincalhar o membro restante. As imagens assumem um poder espectral, como se carregassem internamente portais para dezenas de outras ocultas: vemos os garotos levando uma carreira de um cachorro (quem nunca?) e nos lembramos, como símbolo do que é viver a adrenalina de verdade, dos dias que falamos “pio” de olhos fechados, enquanto nossos pais putos da vida gritavam “e não quero escutar nem mais um pio”. Pio.

O segundo motivo é a aproximação espacial: boa parte dos filmes desta edição do Filmologia possui uma casa da árvore, esse mítico lugar-refúgio-esconderijo de tradição norte-americana; na minha rua tinha uma ruína de uma dessas, recôncavo de um grupo de amigos da geração anterior. Na minha época, a escada já tinha caído, parte do piso cedido e o próprio tronco havia se tornado um cemitério de pregos. Diferente de Os Goonies, onde a instância infância é confundida com a instância estupidez, Conta Comigo me lembra os passeios na praia antes dos adultos acordarem, as subidas nas árvores, a escolha dos melhores lugares, as andanças de bicicleta na beira do açude de Brennand, a professora nos mostrando como funciona um ábaco, as invasões no hospício abandonado da praça da Várzea, tudo isso entrecortado por alguma safadeza e por conversas sérias e banais tomadas com o mesmo respeito (- quem venceria numa briga, supermouse ou superhomem? – Um desenho nunca venceria uma pessoa real). O caso é que todo aquele universo parecia uma extensão da minha rua para dentro da planície da televisão, meu bairro sempre teve esse clima de interior da cidade, sentia algo além de identificação quando o narrador comentava que morava numa “cidadezinha, mas para mim era como o mundo inteiro”, porque por muito, muito, muito tempo, quem dera que fosse para sempre, eu era o menino da rua e somente da rua, que um dia resolveu ir além e quando voltou se deu conta que seu reino era bem menor do que imaginava.

O filme carrega uma delicadeza em seu olhar, sem precisar espernear “olha só sobre o que estou falando”, no que se refere a virada da pré-adolescência para a adolescência de quatro garotos que são quatro arquétipos, quando nos damos conta que o mundo não gira em torno de nosso umbigo, que nossa sensação de pertença é apenas passageira. Olhamos nossos irmãos mais velhos e percebemos a ausência de seus amigos de infância, Conta Comigo acompanha uma aventura que nada mais é que a constatação da separação iminente, como se apontasse para os momentos que nos damos conta, lá pelos doze anos, que as amizades são como “garçons que sempre estão entrando e saindo de nossas vidas”. Misturado às dificuldades familiares de cada um, o que tornava a amizade cada vez mais íntima, e no encerramento do ciclo que deixa mais nítido o limítrofe da lenda e da realidade, vamos aos poucos se despedindo de nossas obsessões infantis, os dinossauros são deixados de lado, a Segunda Guerra Mundial perde seu encanto, os extraterrestres se tornam uma fé subterrânea, esconde-esconde pura lembrança e as vitórias, ou as próprias jogadas do War e xadrez, cada vez mais raras. Sempre vai ser complicado justificar o motivo de nosso amor por determinados filmes e, em meio a trilha sonora com Everyday, Come Go with Me, Stand By Me, Mr. Lee, Great Balls of Fire e Lollipop, Conta Comigo instaura um lugar-memória, uma falsa caixa de pandora, um rabisco amarelado desses que não cansamos de olhar.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A Fortaleza

(Publicado originalmente no Filmologia e partir de um rabisco anterior)

Ao lado de Colheita Maldita, A Fortaleza (Austrália, 1986) foi responsável por alguns dos momentos mais angustiantes da minha – e não exclusivamente da minha – infância, exercendo sua função precisa na composição diária de pesadelos, especialmente porque ambos, cada qual ao seu modo, deslocam a ingenuidade das crianças para um campo sombrio, não enquanto medo do desconhecido ou da perda, não apenas como ameaça ao universo pueril que se mantém acuado como fonte de esperança, mas no sentido de pensar esse próprio universo como produtor de maldade ou vingança. Foi a partir destas duas produções – junto a Anjo Malvado, talvez – que me dei conta que as crianças não estavam tão isoladas da crueldade do mundo dos homens, que também éramos capazes de matar, tecer nossa própria coletânea disjuntiva de códigos e normas, que nosso egoísmo ou crueldade poderia gerar impactos forçosos e, por algum tempo, temi a descoberta dessa espécie de poder em minhas mãos (algo que se aprofundaria durante a leitura de O Senhor das Moscas, escrito por William Golding, que mostra como uma sociedade de crianças é capaz de produzir ritos e crenças particulares, numa reinvenção moral que se afasta absolutamente do que aprendemos como processo civilizatório). A sinopse de A Fortaleza é bem simples: imaginem a novela Carrossel, só que ao invés do lenga-lenga habitual entre Cirilo e Maria Joaquina, imaginem a professora Helena e a turma de alunos em idades diferentes sendo sequestrados por quatro homens armados com escopetas, cada qual usando sua respectiva máscara de animação de festinhas de aniversário: papai noel, gato, rato e pato. A maneira como surgem sorrateiros no pátio da escola, o tratamento cuidadosamente opressor com suas vítimas, a professora diz “crianças, vamos cantar” e papai noel bota a arma na cara dela gritando “cala boca” (e o tempo todo eles mandam ela calar a boca), de maneira que tudo aparece cercado de uma eloquente agressividade associada a impossibilidade de fuga – sentimento reforçado pelos olhares por orifícios mínimos em busca de espaços livres, seja através de um buraco no chão do furgão, seja por meio de uma fresta na caverna.

No caminho para o cativeiro, o roteiro revela logo o tom acima do habitual para o Cinema em Casa (que tradicionalmente já tinha uma tolerância maior em relação à Sessão da Tarde): os sequestradores sugerem que vão estuprar a professora, depois comentam que tem uma aluna “já crescida que daria uma boa diversão”, ameaçam matar o menor e mais fofo dos meninos se outro que havia fugido não voltasse ao furgão. A violência é sugerida em camadas sobrepostas, trabalhando essencialmente em cima do instinto de sobrevivência como necessidade primordial do homem, testando nossa flexibilidade moral, quase como se o diretor Arch Nicholson procurasse esboçar uma situação-limite em que crianças boas por natureza, após serem submetidas a uma experiência traumática, apreendem razões comportamentais que os levam a agir tal qual – ou até pior que – seus algozes. Não por acaso uma das taglines de A Fortaleza é “for one teacher and nine children, the lesson of the day is kill or be killed”, ressaltando o ímpeto de que somos capazes de qualquer atitude diante de uma ameaça iminente (todos os filmes-catástrofe trabalham com isso, mas lembro particularmente da cena de A Guerra dos Mundos em que o protagonista, para proteger sua filha, assassina um homem enlouquecido que havia perdido toda família). No caso da produção australiana, do momento em que os jovens conseguem produzir fogo até a cena em que precisam atravessar um lago por uma passagem subterrânea, quando uma das alunas se desespera, agarra no pescoço da professora e quase as duas se afogam, o fio condutor se apóia numa vontade tão intensa de viver, sobreviver, que revela todo desespero que nos acomete diante do semblante do fim. No momento em que os jovens conseguem escapar temporariamente, o filme saca um falso ponto de virada ao chegarem numa residência, onde logo percebem a presença dos mascarados: mais uma vez, a violência determina o caminho narrativo; antes de deixarem o local, o Papai Noel simplesmente executa o velhinho dono da residência na frente dos infantes, a bala atravessa o corpo e estoura um aquário enorme ao fundo. Nessa época, eu nem sabia o que era Haneke.

No entanto, o maior significante de violência do filme está num detalhe cenográfico associado a uma preocupação formal dos enquadramentos: praticamente passamos os 85 minutos sem ver o rosto dos sequestradores, mesmo quando eles retiram as máscaras na parte final, a câmera os filma de costas, evita a face diretamente, distancia-se, despertando o incômodo de que caso desapareçam, poderão cometer novos crimes e nunca serem reconhecidos, um terror que coloca os jovens no dilema de precisarem resolver esse embate, pois assim como em De olhos bem Fechados ou da própria história real ocorrida em 1972 e repetida em 1977, eles entendem as desvantagens de não usarem máscaras quando estão sob o domínio de mascarados. Preenchidos pela lição de matar ou morrer, as crianças se rebelam, comportam-se como caçadores / guerreiros tribais, resgatando por meio dos ancestrais que habitaram o espaço neolítico da caverna, um primitivo instinto de sobrevivência. Mostram-se preparados para medidas extremas e tenho de concordar que o filme possui – mais uma vez junto a Anjo Malvado, por razões diferentes – o fim mais chocante de todas as produções sobre o qual escrevemos por aqui: depois de montarem dezenas de armadilhas, finalmente há o confronto entre o seqüestrador chefe, o Papai Noel, e os sequestrados, mas quando a luta se inicia, a sequência é interrompida. O corte nos leva ao pátio da escola, onde a professora lê uma fábula para as crianças, mas logo chegam dois policiais, o clima fica tenso, um travelling passeia pelos temíveis rostos angelicais dos pequenos, a professora é então interrogada na sala de aula. Encontraram o último corpo, mas o legista apontou anomalias, determinados ferimentos não condiziam com os depoimentos dados, pois não poderiam ter sido feitos por animais, “o corpo parece ter sido mutilado”. Corta para dentro da caverna, professora e alunos enfiam dezenas de lanças no corpo do sequestrador, jogam pedras, pintam seus próprios rostos com o sangue de sua vítima também ensangüentada. Volta para a sala, as crianças se aproximam, pegam suas lanças, os policias sentem o clima e resolvem ir embora. O filme termina, depois de um dos garotos pregar uma peça usando a máscara do Papai Noel, com a professora liberando mais cedo, a câmera foca em alguns bichos em formol, numa das garrafas há algo semelhante a um coração humano – “nós também temos um troféu” – e em meio aquele nó na garganta, aprendemos um novo significado para “a moral da história”.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

conversas de ônibus

I
- Mas menina, acho que tu não tens noção, ela puxou meu cabelo, deu na minha cara, meteu o cabo de vassoura, assim com força, nas minhas costas, me colocou para fora de casa me chamando de rapariga bem alto no meio da rua e tu ainda queres que eu peça dinheiro emprestado pra ela? Porra, consigo não.

II
- Rapaz, tô aprendendo a mexer num programa massa de edição de fotografia, photo-alguma-coisa, pra tu ter ideia já consigo até pegar aqueles retratos antigos do colégio, scannear e tirar da imagem as pessoas que não gosto, colocando a mesma cor do fundo por cima delas tudinho. Meu irmão, fica perfeito.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Aracnofobia

(Publicado originalmente no Filmologia)

A memória e seus ossos, a torpe lucidez, minha viagem através dos retratos, eu e meu rei trocando segredos, ressonando espaço-viuvez, e a cólera de saber que tudo me possui e ao mesmo tempo nada, que nada em mim é permanência, e tudo é permanência, vínculo, tudo é tangente, tudo está colado a mim.

Hilda Hilst, Pequenos discursos e um grande

Sempre que tentamos resgatar nossas lembranças mais antigas entre o mofo e o abandono, quando decidimos pelos primeiros acontecimentos que incorporamos como experiência de vida, entramos no terreno profundo do rememorar enquanto processo de torção e distorção de fagulhas benjaminianas, escavando um espaço mnemônico que alinha num mesmo plano um naturalismo reconquistado e uma fantasia exagerada. Nesse sentido, uma das encruzilhadas infantis que melhor perduraram em minha memória, entre uma sessão da tarde e uma ronda noturna, se baseia no princípio de que as aranhas nunca simpatizaram comigo. Quando era pequeno, entre os sete e oito anos, estava brincando em casa, numa espécie de quintal lateral longuíssimo, mas cuja largura não passa de um metro e meio de distância entre a nossa janela e o muro da vizinha. De repente, resolvi dar um susto na “menina” passando roupa lá trás, mas não demorou muito até ela me notar, só que ao invés do típico “menino, deixa de ser besta, estou te vendo”, soltou um abismado “Rodrigo, o que é isso atrás de você?”. Havia um horror singular em sua voz, seu rosto parecia anestesiado e quando me virei meio sorrindo, um tanto traquino, estava face-to-face com maior aranha que já vi na vida. Na lembrança que hoje já foi submetida a altas doses de ficção, aparece inclusive aquele mar de olhos horrorosos em superclose tal qual em Aracnofobia (EUA, 1990). Se não bastasse, desde então, secretamente roubei uma lembrança do médico, interpretado pelo Jeff Daniels, e passei muito tempo contando, como para justificar meu trauma, que antes mesmo deste episódio, havia existido outro, quando eu tinha apenas dois anos: uma aranha havia subido em meu berço, andado pela minha perna, mesmo sendo muito pequeno para lembrar, contava que podia reviver a sensação de paralisia completa, até que ela passou pela minha barriga com aquelas oito patas repugnantes e, enfim, alcançou o meu rosto. Pois é, o histórico da minha fobia – que continua firme e forte até hoje – se confunde com as próprias imagens do filme dirigido por Frank Marshall.

De qualquer forma, voltando ao acontecimento, a sequência foi de uma completa histeria familiar: eu saí correndo gritando pela minha mãe, a menina se trancou no quarto, minha irmã olhou e se trancou no dela; minha mãe fez a mesma coisa, mas ao entrar em seu recinto, não por acaso me viu acompanhando tudo pela janela com o ar condicionado ligado. Não lembro bem do meu pai, devia estar viajando, sei lá, mas se tem uma coisa, batata, que assusta uma criança é o absoluto medo estampado no rosto de seus pais. Nossa esperança era o meu irmão mais velho: surfista, metido a machão, ficou um tanto receoso ao ver o tamanho da aranha, ainda assim pegou uma vassoura, amarrou no cabo de um rodo velho e da janela do quarto dele que fica no primeiro andar, ou seja, uma distância considerável, deu uma porrada na maldita. Ela pulou – minha espinha congela só de pensar no pulo de uma aranha e Aracnofobia está inundado deles – e saiu do nosso campo de visão, despertando pânico em todos que assistiam a cena por suas janelas. O remendo soltou, a vassoura caiu e o meu irmão fechou a janela do quarto dele e também ligou o ar condicionado. Foi nessa situação, com toda minha família trancafiada, que surgiu a minha fobia irreversível por aranhas, algo que até já tentei remediar com contatos graduais e abastecendo-me de informações, procedimentos sem sucesso algum. A história terminou com a minha mãe telefonando para a vizinha que adora bicho, uma vez ela chegou em casa trazendo um cavalo branco que encontrou sozinho no meio da rua, para matar, tanger, dar um jeito na situação, “afinal a culpa era dela por ter um pé de carambola em casa” (?). Ela matou, mas antes vimos a aranha dando vários pulos, soltando as pernas como forma de defesa, mesmo dentro do quarto comecei a alimentar o receio de que alguma coisa poderia estar ali comigo, embaixo da cama, dentro de um sapato, atrás de um jarro, passeando na cortina, é como se todas as cenas de suspense de Aracnofobia tivessem sido introjetadas automaticamente no meu imaginário.


Corta.

Segunda história: anos depois, final da adolescência, estava num sítio em Bezerros (cidade antes de Caruaru), com alguns amigos. Basicamente iríamos passar o dia bebendo, contando vantagens e tomando banho de açude. Logo quando chegamos, passamos numa cabana abandonada, onde o caseiro costumava guardar todas as tralhas e enquanto meus amigos exploravam o lugar, fiquei na porta só olhando. Confesso que em Aracnofobia existe um discurso sobre o campo, o interior enquanto espaço perigoso, algo que assume até um tom urbanóide estúpido, como na cena final em que Jeff Daniels, já são e salvo em São Francisco, fala para a mulher: “Sabe do que mais vou sentir falta do interior?”. Ela pergunta: “O que?” Ele responde: “Não sei, por isso perguntei”. Ela completa: “Pelos menos saímos vivos”. Certamente há um preconceito forte aí, mas é preciso deixar claro que a fobia de aranhas determina a forma como a pessoa entra e se porta em determinados ambientes fechados, coloca-a em vigília permanente quando está num lugar isolado, com mais risco delas aparecerem. Ou seja, não é diegeticamente tão absurdo assim. Nessa época, entre os dezesseis e dezessete, a maioria dos meus amigos já sabia do medo irracional, alguns já tinham ouvido que meu temor infantil supremo era acordar morto dissecado com uma aranha saindo da minha boca, outra imagem do filme, mas decerto ninguém tinha presenciado diretamente um ataque de pânico. Também fiquei na porta porque sou desses que odeiam todos os insetos, aracnídeos e derivados; desses que matam até borboletas quando ninguém está olhando, e simplesmente queria evitar qualquer atitude exagerada. Eles encontraram uma jangada e a carregamos até o açude. Meia hora depois, todo mundo nadando, resolvo deitar na embarcação sozinho para pegar um sol. Daí fico lá virando e revirando, quando de repente sinto alguma coisa no meu peito. Pois é, mais uma vez face-to-face com uma aranha e se tem um detalhe que torna Aracnofobia amplamente mais assustador que filmes que apostam em aranhas gigantes, como Malditas Aranhas (EUA / Austrália, 2002), é justamente o fato delas serem do tamanho das aranhas do mundo, de em sua pequeneza e proximidade com nosso rosto esconderem um perigo atroz.

Além disso, não foram utilizadas aranhas de mentira, as pequenas vieram da Nova Zelândia, dizem que são inofensivas apesar da agressividade, já a tarântula gerou alguns problemas por sua mordida dolorosa, até usaram um pequeno protótipo em algumas cenas, mas ambas as espécies foram manipuladas pelo entomologista Steven Kutcher, que tem no seu currículo vários filmes como “coordenador de insetos”. Desculpa a profissão, mas só consigo pensar no diálogo entre o fotógrafo e o cientista no começo do filme: – Qual a sua especialidade? – Viajo o mundo cartografando a existência de novas espécies de insetos. – Você não acha que o mundo já tem insetos o bastante?. Na lembrança mais uma vez mergulhada na ficção, a aranha no meu peito dava dois passos em direção ao meu rosto, como quem se prepara para atacar, só que consegui ser mais rápido, dei um tapa nela e pulei da jangada. Aliás, se tem algo que me transtorna na aranha é sua forma de locomoção e suas patas: dois membros, ok; quatro membros, ok; a partir de seis já começa a virar bagunça, oito é certeza de desespero. Na sequência saí nadando sem parar até a borda do açude, que nunca foi tão grande, pisei nas margens me coçando, batendo-me, igualzinho ao Jeff Daniels, como se o simples toque aracnídeo fosse capaz de fazer brotar filhotes de dentro do meu corpo, como se eu estivesse definitivamente marcado pelo cheiro, como se elas pudessem voltar a qualquer momento e já soubessem quem deveriam matar. Toda folha levada pelo vento era motivo de escândalo, passei cerca de meia hora transtornado até entrar na água para me sentir mais seguro. Depois, mostraram-me a aranha morta, comentaram que ela já estava seca desde o início, ficaram me obrigando a ver a peçonhenta como terapia – idêntico a como a mulher tenta fazer com o marido e óbvio que não funciona – especialmente porque as pessoas não entendem que o medo que está em jogo na fobia é irracional, envolve um respeito árido, o mesmo naturalismo reconquistado junto a fantasia exagerada ao qual me referi lá em cima. Você tem um dado real que é a existência do bicho, mas começa a acreditar em coisas absurdas num contexto de perigo conscientemente desporporcional: daí é um passo para começar a falar que a aranha tá se fingindo de morta, que é o bicho mais perigoso da terra e é justamente ciente dessa dimensão que o filme Aracnofobia fundamenta sua atmosfera de thriller.


Corta.

Terceira e última história: estou na casa de um amigo na praia de Ponta de Pedra, com um monte de estudantes do curso de Biologia, desses que ficam andando e falando o nome científico de cada planta, inseto e o raio que os parta que se mova. Daí em algum começo de noite, todos foram para a praia e eu fiquei com mais quatro pessoas dentro da casa, duas biólogas e dois namorados de quaisquer outros campos de conhecimento. Claro que tratando-se da temática em questão não demorou muito até eu notar a presença de uma aranha enorme num canto escondido. Soltei o grito, os quatro correram para a sala, um dos namorados olhou, esbugalhou os olhos, e se trancou no banheiro enquanto o outro arrumou uma distância segura e passou a observar tudo da cozinha. As duas biólogas, por sua vez, ficaram ao meu lado sugerindo deixar a aranha lá, “que se não mexêssemos nela, ela não iria nos incomodar”. Dizem que as razões históricas da aracnofobia, que confirmaria o fato de ser um temor mais ligado à cultura ocidental que oriental, provém de um surto chamado tarantismo que se alastrou pela Europa entre os séculos XV e XVII, cuja culpa foi atribuída a uma espécie de aranha e a cura só era possível com sessões de quatro horas ininterruptas de dança (semelhante ao transe de quando nós, aracnofóbicos, somos tocados pela aranha). Seja como for, mais uma vez, comecei meu transtorno de ansiedade ou transtorno de pânico que só se manifesta em uma situação particular, gritando que era uma questão de ela ou nós, que se deixássemos a aranha viva, certamente iríamos acordar mortos. Além de que nunca no mundo que conseguiria dormir numa casa sabendo que uma caranguejeira sedenta por sangue estava caminhando sobre as telhas ou sob os lençóis. Já que ninguém quis tomar a atitude, peguei uma vassoura e tentei acertá-la. A aranha pulou, caminhou daquela maneira asquerosa de caminhar, as duas garotas logo sumiram, eu fiquei louco, bem caçador em busca de sua presa até que a maldita se escondeu atrás da mesa de ping pong encostada na parede. Eu só conseguia manter a certeza que seria capaz de conseguir atingir meu objetivo por lembrar que o Jeff Daniels também conseguira matar a aranha no final, ainda que tenha precisado bater, tocar fogo e atirar para ela finalmente morrer. Eu só tinha uma vassoura e seguiria adiante.

Foi desse duelo que nasceu um dos maiores dilemas dos meus dias: a aranha estava num ponto que não conseguia alcançar com a vassoura e se eu fosse arrastar a mesa de ping pong teria que soltar a minha arma, ou seja, ficar completamente vulnerável. Sobe som Ennio Morricone e confesso que sou desses que por conta do filme, deixou de temer as imagens das aranhas nas telas, criando em meio a espasmos incontroláveis um certo fascínio seguro saciado através de vídeos no youtube. Só que diante de uma viva, a dimensão era outra: tentei empurrar a mesa com uma mão enquanto ficava com a vassoura na outra, a aranha correu para cima de mim, eu soltei a mesa, nem lembro se caiu de um lado ou do outro, mas, finalmente, consegui dar o golpe fatal na minha inimiga. Claro que não só um, dei vários, mesmo vendo ela morta, continuava a bater só para não ter chance alguma dela voltar. Mineirinho, treze tiros. Prontifiquei-me de arrumar uma pá, levei o cadáver para fora no intuito de tocar fogo nele, como não consegui arrumar álcool, decidi que ia jogar bem longe, havia algo dentro de mim temendo que surgissem outras clamando por vingança. Foi durante esse acesso de loucura, contam que a loucura é a forma mais forte de sofrimento, que chegou a horda de biólogos, em dois segundos virei o judas recriminado, “a pobre da aranha era um espécime raro”, “você devia ter tangido para longe”, “blá blá blá, blá blá blá”. Meus argumentos eram tão absurdos que tenho certa vergonha de lembrar, mas era no nível “não podia deixá-la viver, ela já tinha marcado a minha cara”. Portanto, sinto que não preciso falar muito mais sobre o filme em si, até reassisti a produção para escrever esse texto e é isso, o desespero continua, não temos aqui uma crítica, um ensaio, uma crônica, e sim, um relato terapêutico. Enquanto isso, os frames continuam se confundindo com as lembranças, os ímpetos absolutamente irracionais ganham linhas de racionalização e a única parte boa de todo esse percurso é que, pelo bem ou pelo mal, ainda sou capaz de experimentar até hoje a mesma dimensão do medo que costumamos deixar para trás, mofado, escondido ou abandonado embaixo de algum travesseiro infantil.

Corta.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Do mundo dos pequenos truques ou como ser adolescente para sempre

(Publicado originalmente no Filmologia)

Clube dos Cinco (EUA, 1985) não fez parte da minha infância, aliás, e aviso logo aos vigilantes-da-cabeça-pensante que nem adianta, não tenho vergonha alguma disso, descobri o filme apenas no final da década de 1990, talvez início dos anos 2000, no episódio Detenção da primeira temporada de Dawson’s Creek em que o protagonista e seus amigos, assim como no clássico da Sessão da Tarde, passam um sábado inteiro de castigo no colégio por alguma infração cometida durante a semana. Não demora muito para o seriado assinalar sua homenagem, evocando uma cinefilia boba, baseada no consumo de VHS, nos programas noturnos de televisão, pelas sessões com os amigos e por uma curiosidade mórbida por famosos e pelos bastidores. Os jovens logo trocam algumas palavras sobre a produção de Hughes, dando corpo ao imaginário norte-americano pelo qual é responsável, inicialmente resumindo a sinopse em menos de 140 caracteres para então se debruçarem com especial interesse sobre os atores, discorrendo sobre como foram parar nas pontas dos piores filmes, como perderam o ar de ingenuidade, como uma doença estranha abateu um deles, como envelheceram, envelheceram até simplesmente sumirem das telas e serem esquecidos.

Não lembro se foi lá ou em alguma das milhares outras referências que a obra já recebeu, que escutei pela primeira vez o boato que existe uma versão de quase três horas, inicialmente cortada a pedido dos produtores, corte mantido pela sanidade do diretor, que cresceu solitário numa vizinhança de velhos e garotas, ficando posteriormente conhecido pelo seu singular apreço por revelar cenas adicionais durante ou após os créditos de seus filmes. Boato ou não, o que importa é que há uma dinâmica em Clube dos Cinco que condiz com a vontade desesperada de ser jovem, de se desviar das amarras que a vida adulta impõe e transgredir as normas através de pequenos truques, fórmula até bastante repetida em outros filmes da época: não há bem uma introdução longa e arrastada onde nada acontece, do pífio prólogo corremos para o “ponto que importa”, somos rapidamente apresentados ao jogo e jogadores, até porque tanto na produção de Hughes quanto no seriado, não mostrar o “antes”, o “motivo de estarem ali” é determinante para narrativa. Ao longo da trama, os eventos são entrecortados por videoclipes, que demarcam a temporalidade da fuga do tédio ou do conformismo, por meio de conversas, corridas, jogos, fumos, xingamentos, danças, ou como diria o locutor das propagandas: “aprontando mil e uma confusões”.

A questão é que na impossibilidade de passarem o resto da vida interpretando adolescentes panacas ou jovens adultos panacas, os atores dos papéis que aprenderam a fazer como os papéis de suas vidas foram renegados pelas produções juvenis da década seguinte, terminaram subjugados pelo singular ethos púbere que faz do envelhecimento, descarte; notaram que a adolescência não dura três horas, apenas uma e meia. Não é apenas irônico como tremendamente cruel, se levarmos em conta que uma considerável leva dos filmes que estamos trabalhando nesse especial do Filmologia sobre a infância tratam, de uma forma ou de outra, desse medo de crescer, dessa sensação dissimulada que nos pressiona em diferentes estágios da juventude, fazendo inclusive com que os mesmos atores de vinte e poucos anos passassem a década de 1980 inteira alternando entre estudantes secundaristas e recém-formados arrastados para a vida adulta. No mesmo ano de Clube dos Cinco, Emílio Estevez, Ally Sheedy e Judd Nelson, pertencentes ao Brat Pack – expressão usada para designar os atores que trabalhavam juntos em inúmeros filmes de mesma temática – estiveram em O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas, de Joel Schumacher, que registra a insegurança e melancolia de um grupo diante do impasse do amadurecer, cujos integrantes não lembram “quem conheceu quem primeiro, ou quem se apaixonou por quem primeiro”, só lembram dos sete sempre juntos.

Aliás, a expressão é uma variação de Rat Pack, que se refere aos atores da década de 1950 liderados por Frank Sinatra, e, a partir de 2005, mesmo contra a vontade dos próprios, surgiu o Frat Pack para as produções que envolviam os comediantes Ben Stiller, Jack Black, Will Ferrell e os irmãos Wilson. No entanto, no caso do grupo que estamos tratando, para além de ficarem trocando papéis, o garoto-esporte que vira o baderneiro, o baderneiro que vira o yuppie, a estranha que vira a patricinha, a patricinha que vira a drogadita, o nerd virgem que continua nerd virgem, o que está em jogo são os arquétipos utilizados, pois há um claro investimento no esquematismo simples e universal para afetar uma rede mais ampla de matrizes espectatoriais. A interação entre as personagens em Clube dos Cinco começa pelo baderneiro, que só consegue se comunicar pelo insulto, lembrando aqueles velhos repetentes da sétima série: maiores, mais fortes, estavam sempre contando vantagens, se gabando “de serem os únicos que tinham usado uma camisinha pra valer”. Hughes propõe que essa atitude não passa de vontade de cumplicidade e autodefesa num universo hostil.

A frase de Bowie (retirada da música Changes) que serve de epílogo simboliza bem um contexto que avança dos atores para as personagens e daí para os espectadores: “E as crianças em que vocês cospem enquanto elas tentam mudar seus mundos são imunes aos seus conselhos. Elas sabem muito bem por aquilo que atravessam”. Decerto, é notável a quantidade de filmes produzidos durante os anos 1980 que consideram a adolescência não apenas como uma fase da vida, mas como um conceito que transforma as dificuldades próprias do período, os lances de aventura e os arremates de felicidade não num estágio efêmero, mas numa condição utópica de existência. A imagem mundializada da High School, que no caso de Clube dos Cinco é determinante desde os cortes iniciais onde todo espaço é passado a limpo por uma concatenação de planos abertos e planos detalhes, revela um campo nostálgico e cruel, uma pichação “I don’t like mondays”, onde é reafirmada, menos enquanto perspectiva coletiva ou mesmo abertamente política, uma conjunção de lapsos libertários mínimos, provocados pelo e para o jovem como consumidor potencial (cuja trajetória cinematográfica se inicia duas década antes). Mesmo a ideia de detenção sendo absurda para nós que somos punidos com suspensão (ou seja, ao invés de mais tempo no colégio, passamos alguns dias afastados dele), o filme imprime seu impacto pela presença de cinco protagonistas simultâneos, que nos atingem em diferentes pontos de nossas idiossincrasias.

Se existe uma preocupação maior em Clube dos Cinco, que quase se chamou Library Revolution, ela reside na relação entre adolescentes e autoridades, na ânsia de desafiar as autorizações, numa lógica em que diante do suposto dever de ficar na biblioteca até o final da tarde, escrevendo uma redação de mil palavras sobre eles mesmos, sem poder falar, se mexer ou dormir, os jovens, que inicialmente se odeiam, sentem-se estimulados a não apenas compartilharem seus segredos, mas unirem suas diferenças numa sucessiva brincadeira de lutar contra a opressão. É essencial pensar nesse deslocamento contextual de cinco desconhecidos que todos os dias ocupam e vivem de maneiras absolutamente desconexas o mesmo espaço, colocando-os numa redoma isolada acrescida de alteridade, dando as ferramentas para que com o tempo compartilhem suas infrações e outros segredos. Há nessa troca não apenas um sentimento de libertação, mas, como boa parte dos filmes em foco, uma dúvida entre a vontade, negação e umas três doses de ranço yuppie em relação a um mercado de bens simbólicos, quase como se estivessem aprendendo a negociar suas particularidades, suas diferenças, em troca de compreensão.

Clube dos Cinco é antes de tudo um filme de confissão, todos se confessam, Hughes parece apostar um pouco no que o narrador de Singularidade de uma Rapariga Loura, de Manoel de Oliveira nos fala no início da película: “o que não se conta a um amigo, conta-se a um estranho”. E aí merece o retorno ao episódio de Dawson’s: diferente do filme, todos os presentes são amigos, exceto por uma personagem, Hebe, e é justamente sua presença que desencadeia as farpas responsáveis por abrir os olhos uns dos outros, apontando sarcasticamente como a intimidade entre eles havia se tornado uma instância de cegueira e conformação. Acontece que é justamente esse olhar exterior, não viciado, que adentra o espaço do outro com mais perspicácia, até mesmo mais violência, do que aqueles que já residem ali. O que há de mais vigoroso em Clube dos Cinco é que ao mesmo tempo que todas as personagens se agridem por suas diferenças é também por essas diferenças que despertam curiosidade umas nas outras. Temem o futuro, não apenas um medo de saírem da adolescência, mas especialmente por tomarem o mundo adulto como o mundo de seus pais: “vamos ser como eles” / “nunca” / “é inevitável”. Também temem o encontro deles fora da redoma de um sábado de castigo.

Termina o filme, cada um segue o seu caminho, e, mesmo sabendo que todos serão esquecidos menos de uma década depois, que provavelmente se tornarão iguais aos seus pais, resta confabular: como devem ter sido os olhares na segunda-feira?

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Negociação

Joaquim tomou nota em seu caderninho que a diferença entre pegar um ônibus na sua cidade natal e em outra cidade qualquer se fundamentava no simples fato de que na primeira, ele necessariamente entrava, sentava, abria um livro e dormia, enquanto na segunda, terceira ou quarta, ele entrava, sentava e observava atento as miudezas do mundo. Todo santo dia que passava três vezes o tempo de viagem, entre a sua casa e o trabalho, apertado dentro de um coletivo lotado, com idosos passando mal, crianças chorando e um cheiro de suvaco daqueles, desejava avidamente matar o prefeito das mais criativas formas. Joaquim matutava com fé: lembrava da overdose de suco de cenoura que lera em algum livro e prosseguia confabulando até chegar na tartaruga arremessada por uma águia que matou o dramaturgo grego Ésquilo. Aliás, numa semana dessas, ele resolveu tomar uma cerveja e doze quartinhos com o líder da torcida organizada do maior time das redondezas para, finalmente, conseguir mobilizar a verdadeira revolução na sua cidade. Terminaram bêbados, não pagaram a conta, mas voltaram de táxi. Deixaram os protestos para outro dia.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Para não esquecer a barbárie

"Dor é uma sensação desagradável que varia do desconforto leve ao sofrimento escrutinante, geralmente associada a um processo destrutivo atual ou potencial dos tecidos e que se expressa através de uma reação orgânica e/ou emocional".
Algum dicionário velho
Se fosse possível traçar um brevíssimo inventário de objetos, produzidos ao longo da história da humanidade, que carregassem consigo uma matriz da dor e da opressão de algumas classes sobre outras ou do próprio homem sobre a natureza, de preferência traduzindo essa intenção em formas tipográficas, o resultado seria próximo dos recentes trabalhos do artista plástico José Paulo, reunidos na exposição Para nunca mais me esquecer. Logo no primeiro salão, nos deparamos com com uma série de cinco quadros pequeninos, pintados em preto e branco, com uma faca cravada em figuras dúbias, geralmente associadas ao desenvolvimento da educação no país, como livros e carteiras. No entanto, para além de um debate sobre a censura que se insere cada vez mais democraticamente dentro do seio da sociedade, o interesse do recifense, ao lançar facas também sobre poltronas e colchões, aponta para uma representação da domesticação de indivíduos sobre indivíduos através de relações de poder bastante pontuais, por vezes, subterrâneas, tais quais as entrelaçadas entre os professores e seus alunos, os psicólogos e seus pacientes, os profetas e seus fanáticos ou os/as cafajestes e suas/seus amantes. A ideia de barbárie que está em jogo, não é apenas a da ordem etnocêntrica que julga o Outro como selvagem por desconhecer e não compactuar com seus valores culturais, mas também da palavra enquanto símbolo e sinônimo enraizado durante o Século XX para traduzir uma era onde os desejos foram suplantados pela violência ou que os sonhos tiveram de se desviar a todo momento da tirania.

O primeiro ambiente da exposição é completado por duas esculturas que digladiam a atenção de um visitante distraído e que, mesmo bastante dedicado cognitivamente, resiste a entrar no labirinto semântico das proposições poéticas. Na primeira delas, um grande letreiro composto de duzentas peças reproduz em cerâmica, a partir dos moldes tipográficos utilizados em cordéis, a definição de "dor", retirada de algum dicionário desatualizado e usada como epígrafe deste texto. A força embutida no conceito repousa justamente na abertura de sentido que ele carrega, podendo ser aplicado a diferentes gradações entre o universo material e imaterial. A segunda obra, a que deu origem ao projeto, é uma construção caótica, baseada na imponência de 26 (ou seriam 28?) “ferros de marcar boi” entulhados uns sobre os outros, conjurando uma espécie de alfabeto doloroso a partir das letras entalhadas nas extremidades. A obra remete ao paradoxo de estarmos inseridos, enquanto sujeito e enquanto objeto, num processo civilizatório em que inúmeros preceitos da realidade foram e são instaurados a partir da barbárie: seja ela explícita, pele queimando, seja ela emocional, pele sofrendo. Para José Paulo, “o ser humano marca um animal através do queimar ou mesmo mutila outro ser humano, afetando irreversivelmente sua memória celular, energética e social. Acredito que isso repercute naquele momento e a partir daquele momento, atravessando décadas e gerando traumas em diferentes gerações”.

Como bem lembrou Derek Walcott, Prêmio Nobel de Literatura e autor do poema épico "Omeros", em debate recente na Fliporto, “nosso maior legado colonial é o idioma, nós nos expressamos todos os dias através de um código cuja marca histórica é a dor”. Ele usou esse argumento para justificar a maneira como sua obra discute a própria presença da língua na sociedade, defendendo o uso de expressões e gírias que se desviam da norma culta, estabelecendo pontes com dialetos, afinal como já dizia Manuel Bandeira, "a vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / vinha da boca do povo, na língua errada do povo / língua certa do povo". Para José Paulo, sua exposição "trata dos caminhos que a humanidade pode escolher, como alguns são impostos por meio de sofrimento e como ainda assim nos resta algum livre-arbítrio. Meu objetivo é brincar com o limítrofe da escolha entre essas possibilidades”. Para tanto, o artista, que sempre teve um apreço pelo jogo que envolve as escalas e as dimensões do que procura representar (ou reapresentar), produziu carimbos siameses gigantes, objetos únicos que dão continuidade ao seu projeto “repetir, repetir, repetir”, que trazem em suas extremidades, num jogo de conteúdo e forma, conceitos opostos como “approved” e “denied”; “positivo” e “negativo”; “nunca” e “sempre” ou “original e có­pia”. É uma pena que carregam o ranço do não manuseamento dos museus, afinal carimbos são feitos para carimbar, no caso carimbar as paredes e, numa perspectiva um tanto Lygia Clark, tais artefatos atingiriam sua magnitude através do toque que transforma aquilo que é, que está sendo, numa reminiscência do que foi.

A exposição basicamente é toda constituída por materiais comuns ao nosso repertório ancestral, como madeira, ferro, barro e papel, e em duas das obras, o recifense resgatou uma espécie de memória de objetos extintos, como máquinas de escrever ou os próprios carimbos, tornando-os instrumentos de reativação temporal de procedimentos. Aproxima, assim, os simples e aparentemente neutros caracteres - produtores de uma carga simbólica - aos contextos sociopolíticos ditatoriais da década de 1970. Por fim, encerrando o debate sobre determinadas culturas que impõem regras e valores sobre outras, seja num âmbito macro como nas guerras, seja num ambiente micro dentro de uma residência, José Paulo comenta que ao ver a foto da menina afegã Aisha, que teve o nariz e as orelhas mutiladas pelo marido e se tornou capa da “Revista Time”, sentiu um terror imenso. Como para conseguir resolver essa questão dentro de si e meio que lançar essa violência para outro campo, desenhou três retratos de, segundo Umberto Eco, "seres feitos para amar e serem amados", símbolos de beleza da cul­tura ocidental - Brigit­te Bardot, Grace Kel­ly e Elizabeth Taylor - no auge de suas juventudes e removeu seus narizes. “Estamos vivendo numa lógica da imagem de mídia, você olha para algo bastante chocante, mas no outro dia esquece e já procura a próxima aberração. Procurei, então, me apropriar de ícones que definiram o que é beleza no nosso imaginário para potencializar o impacto”.

domingo, 13 de novembro de 2011

[projetotorresgemeas]

[projetotorresgemeas] from [projetotorresgemeas] on Vimeo.

Mesmo que renda noites a fio de conversas pelo telefone, não vou me prolongar no assunto porque já escrevi sobre ele e continuo acreditando nas palavras anteriores, acreditando mais ou menos na verdade, de modo que só queria fazer uma breve ressalva sobre o lançamento do [projetotorresgemeas], especialmente tomando como referência o debate que se alastrou pelos cinemas e pela internet a partir do curta realizado independentemente por cerca de sessenta colaboradores (entre eles, eu o/). Sinto que, de maneira geral, as pessoas estão do mesmo lado da luta e criticam a construção desumanizada de edifícios, anotando os efeitos ampliados na vida coletiva nos últimos dez anos, como o trânsito permanente, a falta de investimentos em transportes públicos, o não apoio aos meios alternativos ou mesmo a poluição do Rio Capibaribe. No entanto, muitas vacilam em suas justificativas, batendo repetidas vezes em razões equivocadas, transformando soluções cinematográficas contundentes em argumentos trôpegos. O que está em jogo não é um processo de demonização dos prédios, apropriando-se da hipócrita lógica "quem vive em casa é bom, quem vive em edifício é lobo mau". Ok, pessoal, bem menos. Sem dúvida, o debate principal reside num olhar sobre a reorganização espacial, padronizada e sem resquícios de criatividade alguma, a princípio uma discussão estética que, claro, não deixa de ser profundamente política, pois atravessa o imenso risco em aceitar um projeto de desenvolvimento da cidade ditado pelos interesses comerciais das grandes construtoras (sob o aval da Prefeitura e total supressão da lei dos doze bairros sancionada em 2001). O fato é que Recife está se transformando em um simulacro de cidade, sempre empurrando as classes mais baixas "para outro lugar" ("Gentrification"), capitalizando cada metro quadrado no mercado imobiliário, dando corpo ao paradoxo onde a fileta básica de caráter público deixa de ser condição do espaço urbano, o que gera uma desmobilização da convivência compartilhada e uma cultura de shopping contaminada em todos os patamares da vida social. Cada vez mais, como é muito bem representado em Praça Walt Disney, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, espaços privados, imbuídos da segurança do lar e do isolacionismo burguês, emulam espaços públicos em seus parquinhos, quadras, academias e piscinas particulares. Todos os sessenta indivíduos que participaram do [projetotorresgemeas] se mostraram inquietos com a situação, queriam protestar, revelar o nível problemático que atingimos, de tal modo que o filme funciona - para além das dissonâncias internas - como um manifesto que marca o fim da melancolia e da nostalgia enquanto pontos de fuga do cinema pernambucano, um cinema que me parece andar cada vez menos de ônibus, assumindo um tom acima para reafirmar sua militância cidadã diante da paisagem arquitetônica da cidade. Lamentar para sempre não nos levaria a lugar algum.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O tempo como equivalente geral


Quase toda ficção científica carrega consigo um projeto de futuro, na maioria das vezes um projeto distópico, que tanto alinha suas proposições aos ecos pessimistas dos livros 1984, de George Orwell e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, como revela os desencantos políticos de sua própria época. Decerto, o gênero mais amado pelos geeks de plantão manifesta seu vigor quando, mesmo se passando daqui a dois ou duzentos anos, mesmo adentrando uma galáxia muito muito distante, estabelece alegorias e parábolas do presente, apontando os riscos extremados de nossa própria alienação. É como se escorresse pelas imagens uma ansiedade em abalar o simulacro de perpétuo estado de conforto ou nosso desinteresse pela vida coletiva da cidade. Para o bem ou para o mal, esse parece ser o objetivo de O Preço do Amanhã, roteirizado, produzido e dirigido pelo ainda promissor Andrew Niccol, que tem na bagagem obras como Gattaca, assinou o roteiro de O Show de Truman e claramente é devoto de THX-1138, de George Lucas. No entanto, se essas referências demonstravam uma peculiar sensibilidade no trânsito de universos metafóricos, na comunhão entre acidez e leveza, na busca por segmentos perspicazes para falar sobre categorias como classe, meios de comunicação, tempo, dinheiro, trabalho, padronização, infelizmente, nesse seu novo filme, ele evidencia a inexistência de um imperativo categórico em sua carreira, não só transformando crítica social em descarte - assim co­mo fez em seu fraco S1m0ne - como emulando a vontade de transformação revolucionária por meio de uma vista superficial da realidade. Antes de tudo, o herói está de volta.

O filme parte, inegavelmente, de um ponto de partida interessante, um sistema político em que o tempo serve para definir as fronteiras dentro de uma sociedade de classes, como se o gene do envelhecimento tivesse sido abolido, os ricos vivem séculos, até milhares deles, andam devagar, comem saboreando cada pedaço, enquanto os pobres resumem suas existências a cerca de 30 anos, estão sempre apressados, dando pequenos golpes para escapar do fim. Todos nascem com um relógio no braço que começa a funcionar a partir dos 25 anos, diminuindo segundo por segundo e definindo também a aparência que o indivíduo terá para o resto da vida. Esse pressuposto lembra bastante toda discussão do tempo ocioso como tempo criativo, do tempo livre e burguês que Adorno comenta como instância necessária a produção intelectual ou mesmo, remete, ao cartaz erguido na USP a poucos dias atrás, com a frase "meu pápi paga tudo para mim, por isso tenho tempo de ser revolucionário". Certamente, vivemos num ritmo tão puxado de trabalho no dia a dia que podemos até reclamar, lamentar, blábláblá, mas quase nunca arrumamos tempo para, assertivamente, nos posicionar ou nos manifestar, estamos sempre cansados, precisando de mais e mais dinheiro, de forma que os que terminam "se politizando" teoricamente são os que estão mais afastados do chão e do cotidiano dos trabalhadores, são filhos cujas contas chegam absolutamente pagas. Sequer sabem o custo de um mês de suas próprias vidas.

Na lógica do filme, todos os serviços e produtos também são pagos por meio de horas, minutos, dias, semanas, o tempo funciona como equivalente geral, seria o mesmo que dinheiro numa perspectiva marxiana e não apenas identifica a classe, como desmonta o processo de mobilidade social: existem inúmeros fusos que hierarquizam geograficamente os indivíduos, quanto mais se consome, quando não se tem tempo, mais rápido se morre. Ou seja, um grupo de magnatas domina uma grande quantidade de tempo e um grupo enorme precisa repartir o resto ínfimo - que ainda é abocanhado em parte pelo sistema financeiro dominado pelos magnatas. O Preço do Amanhã coloca o protagonista Will Sallas, interpretado pelo cada vez mais ator e menos cantor Justin Timberlake, no papel de um pobre rapaz que, ao salvar um rico suicida nas ruas do gueto, cujo grande drama era justamente o de viver para sempre, termina por ganhar uma fortuna de tempo. Enquanto ficção científica, o filme se alinha aos projetos futuristas que abdicam de uma tecnologia de ponta para reconstruir os espaços urbanos, os meios de transporte ou comunicação, as próprias relações interpessoais, apostando justamente no contrário, na pouca diferença entre a data distante e os dias de hoje, naturalizando o debate instaurado em uma para as duas instâncias.

Ao seguir para o fuso horário dos mais ricos, ele termina sendo perseguido por policiais corruptos conhecidos como controladores do tempo, que fazem valer na força as regras do sistema, mas que são adestrados através da ração de horas diária. Sallas termina sequestrando [Síndrome de Estolcolmo] tendo um caso com a filha de um banqueiro. O filme, entretanto, assinala desde o início seu entrave ideológico: para além de uma visão reducionista, de diálogos que parecem depor contra o próprio universo inventado, das atuações e da fotografia, o casal tenta instalar uma revolução do tempo, redistribuindo o excesso dos mais ricos com os mais pobres, numa clara referência ao compartilhamento dos meios de produção. Além da referência a Bonnie e Clyde e Robin Hood, o filme parece acreditar, ou mesmo vender, a hipótese de que as transformações políticas só acontecem enquanto atos de filantropia (dos mais ricos, dos políticos), como se as pessoas fossem instintivamente incapazes de reivindicar por elas mesmas. Num momento em que ve­mos o mundo se mobilizando em ações coletivas de ocupação de espaços públicos - e que o Brasil parece ser a lesma dentro desse processo histórico, o cinema de Niccol soa perdido no tempo, despregado da sua contemporaneidade, ainda sofrendo da clausura narrativa do “messiânico ho­mem escolhido” que surge para nos salvar.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O diabo está lá fora

(Publicado originalmente no Filmologia)

“Leaning, leaning, safe and secure from all alarms,
Leaning, leaning, leaning on the everlasting arms,
Oh, how sweet to walk in this pilgrim way,
leaning on the everlasting arms,
Oh, how bright the path grows from day to day,
leaning on the everlasting arms,
What have I to dread, what have I to fear,
leaning on the everlasting arms,
I have blessed peace with my Lord so near,
leaning on the everlasting arms”

Nos inexatos minutos que antecedem o final da infância, quando cada ato carrega sua finitude em potência e as desventuras corriqueiras aparentam uma discreta melancolia, todas as crianças são obrigadas a lidar com o peso das mudanças, marcando seus sorrisos pueris com um gradual amargor. Querem (e não querem) crescer, não sabem ao certo o que estão para ganhar e o que estão para perder, rompem só de birra as fronteiras instituídas por seus tutores – sem, no entanto, irem muito longe, afinal seus olhos já vislumbram a alteração do mal de aspecto ’sobrehumano’ por um demasiadamente ‘humano’. Habitam, como bons filhos da classe média, uma redoma segura, atravessada por alguns traumas, claro, mas cujos portões reluzem uma curiosidade mística ao separarem e demarcarem quem são eles de quem são os outros. Basta, então, um poderoso ruído ou uma presença estranha, o namorado manco de alguma vizinha, um tio desconhecido de nariz enorme, o atropelamento de um cachorro ou o linchamento de um ladrão para que os vultos da noite ganhem materialidade não enquanto olhar distante, apaziguado e borrado por uma grade, mas enquanto olhar saído do sugo de seus próprios cotidianos. Rapidamente veem em frangalhos a invisível harmonia firmada entre uma coragem fictícia e o seus imaginários de proteção, o ‘lá fora’ e o ‘aqui dentro’ se tornam espaços indiscerníveis, fantasias de resistência, bicicletas e bonecos são relegados ao desuso, deixando o caminho livre para o diabo entrar.

Diante do inevitável, aceitam que é preciso separar uma caixinha com todas as certezas infantis e deixá-la sozinha embaixo do guarda-roupa, abrindo-a sistematicamente a cada dois ou três anos, como um lamento por constatarem a diminuta dimensão de suas existências em relação ao mundo preenchido por um tempo que não para de passar. Antes, tudo era etéreo. Como diz um melancólico Cascão em uma das tirinhas de Maurício de Souza, “envelhecer é aprender a se despedir das coisas” ou como comentou Ziraldo, remetendo ao seu clássico da literatura infantil, O Menino Maluquinho, na passagem de página onde está escrito que “o menino maluquinho não conseguiu segurar o tempo! E aí o tempo passou. E, como todo mundo, o menino maluquinho cresceu” é o momento em que mais adultos desabam e choram. Pois bem, parece que é justamente nessa transição de ciclos, onde crianças de um mundo isolado lidam com o horror de um mundo expandido, instante em que os medos – de perder a mãe, de ser abandonado, de ser esquecido, de não ser amado – parecem ganhar forma física, que O Mensageiro do Diabo arma sua premissa: na primeira cena, garotos brincam de esconde-esconde, um deles, após contar até cem, procura seus colegas escondidos, mas termina encontrando o corpo de uma mulher morta nas escadas do porão. Sabemos o tom do único filme dirigido por Charles Laughton: crianças encontram a morte e são obrigadas a crescer.

Aliás, se existe uma lenda reproduzida sem pudor no sistema cinematográfico, dessas que adoramos contar, é a de que a gênese do medo em um bom filme de horror, ou que beire o horror sem perder o estranhamento, reside, sobretudo, na presença de uma criança: seja quando ela encarna o próprio mal, gerando um oxímoro que envolve em um único corpo inocência e perversidade, seja quando representa apenas a ingenuidade diante de um mundo terrivelmente voraz, seja quando ela assume o papel do espectador pronto a se impressionar. O Mensageiro do Diabo segue simultaneamente pelos três caminhos. No primeiro caso, claro que o diretor não deixa de lado a crueldade ímpar da infância, marcada pela cena em que vários garotos zombam dos dois irmãos que perderam o pai na forca, no entanto, não temos bem uma criança, mas um falso profeta que se apresenta como cordeiro para ludibriar o seu aspecto de lobo. Trata-se de um golpista que se passa por pastor para seduzir, roubar e matar jovens viúvas, mas cujo incontestável horror surge da religião fundada na heterodoxa relação combinada particularmente entre ele e Deus. Na lógica de Harry Powell não temos como saber em qual casulo reside o maior perigo: se no amor que o carrasco promete à mãe de Pearl e John ou se no ódio conservador que carrega de antemão. Os dedos do vilão são repetidamente colocados em destaque, a palavra ‘amor’ em primeiro plano surge sob os auspícios da palavra ‘ódio’, tornando ainda mais robusta a dualidade do mal que se apresenta como humano (e menos como sobrehumano).

No segundo caso, temos as crianças como marcas da ingenuidade e pureza sendo assoladas pela chegada desse estranho, sua aproximação com a mãe e o rápido casório. Se toda narrativa se baseia na iminência e confirmação da tragédia, na insuficiência da autodefesa, O Mensageiro do Diabo joga bem com o princípio do cinema como janela, do cinema como tela de projeções dos espectadores (transformados em espectadores-crianças), não no intuito de agradar ou revelar, mas de gerar angústia. Passamos o filme todo esperando pelo pior, basta uma nota de dólar recortada voar da boneca de Pearl para os pés do pastor para sentirmos arrepios, o diretor acentua o contraste através da atmosfera funesta entrecortada pela recorrente imagem de crianças dormindo, olhos fechados em corpos espremidos. Não há melhor representação da fragilidade. Depois de abandonarem a fita branca no sentido que Michael Haneke aplica em seu filme mais recente, John and Pearl fogem por entre os perigos da noite, numa dimensão-limbo meio real e meio onírica, através do rio cercado de árvores com aranhas e sapos. Laughton faz da busca por um refúgio, uma travessia de quem encara o mundo pela primeira vez, um amadurecimento precipitado pela ausência materna, o momento em que os infantes da rua e somente da sua rua abrem os portões e vão além. Acolhidos por uma senhora, John se mostra como um bicho arisco, desses que de tão amáveis levaram inúmeras pancadas até se tornarem amargos e pessimistas. Quando ela consegue conquistar sua confiança, a infância – ou a segurança que ela representa – parece estranhamente retornar.

Há uma obsessão relacional na construção bloco a bloco de O Mensageiro do Diabo, que vai da técnica básica de enquadramento às fagulhas insurgentes de psicanálise, não dotando a película de um aspecto de aprendizado cinematográfico, tudo é evidente e vigoroso, claro, mas o roteiro preza por uma moral desviante, de modo que cada recurso clássico parece surgir como seu igual invertido. Daí temos as cenas irmãs da reação de John diante da prisão do pai no início e do carrasco Powell ao final, tal qual os numerosos planos baseados no princípio de choque: a mulher casamenteira convence a mãe de John a arrumar um marido, na sequência o trem onde está Powell esbraveja e anuncia; o pastor ajeita cuidadosamente a gravata do menino, na sequência o garoto é enquadrado sem cabeça; o vilão exclama sobre a mulher que acabou de matar – “ninguém pode dizer que não fiz de tudo para salvá-la” -, logo em seguida surge um dos planos mais belos do filme, ela embaixo do rio, amarrada ao carro, fantasmagoria entre cabelos e algas. Nessa fase de transição, onde não são mais crianças nem outra coisa, onde o mundo mágico e real parecem travar um constante duelo, Powell, Robert Mitchum, com a inclinação lânguida de seu corpo, um cinismo frio, o tom de voz hipnótico, sedutor e o semblante do olhar de ressaca, encarna muito bem esse mal que se divide na dualidade entre ser humano e sobrehumano. Nos inexatos minutos que antecedem o final da infância, a única forma das crianças resistirem é prorrogando um pouco mais o tempo.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Espaço Urbano

Eles estavam almoçando em um restaurante,
que fica dentro de uma loja,
que fica dentro de uma academia,
que fica perto da saída norte do Shopping,
cuja hora do estacionamento custa 10 Reais.

domingo, 2 de outubro de 2011

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Revolução

Depois das inúmeras matérias nos jornais nacionais da vida sobre os protestos dos jovens em Londres - poderia ser sobre os moradores de Jordão Alto, Igarassu ou IPSEP - em que somos apresentados a um amontoado de imagens sem sentido, pneus ou carros queimados, multidão correndo, pedras arremessadas, spray de pimenta, enquanto ouvimos a repórter soltar palavras como "vândalos", "destruição", "caos", nos damos conta rapidamente da omissão completa em contextualizar reivindicações ou mesmo destrinchar os meandros mínimos das disputas. Não penso apenas no processo de achatamento da realidade, na negação sem constrangimento da informação básica, na singular regulação do conformismo ou mesmo na discreta vigilância / intimidação legitimada por tais matérias, muitas vezes evocando presenças e ações absurdamente autoritárias, mas em particular como os meios tradicionais de comunicação assumem invisivelmente e conscientemente a mesma opinião da Secretária da Peste, na peça "Estado de Sítio", de Albert Camus. Diante da insatisfação coletiva na cidade de Cádiz, ela comenta:

"Parece até uma revolução! No entanto, bem sabeis que o caso não é para isso. Mesmo porque não compete mais ao povo fazer a revolução: seria muito fora de moda. A polícia, hoje, é suficiente para tudo - mesmo para derrubar o governo. E, no fim das contas, não será melhor? O povo pode repousar, enquanto alguns bons espíritos pensam por ele e decidem, em seu lugar, qual a felicidade que lhe será favorável. Vamos, meus bons amigos... Não seria preferível ficardes onde estais? Quando uma ordem é estabelecida, custa muito caro mudá-la".

CAMUS, Albert. Estado de Sítio; O Estrangeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (pág. 126)

sábado, 27 de agosto de 2011

1932

Todo santo dia que coloco meus pés fora de casa, fico incomodado com a quantidade de carros na rua, com o alargamento de horários de trânsito, com a estranha violência apática dos motoristas, com a quantidade de edifícios "copia e cola", como alguém comentou, com as demolições de casarões antigos, de tal modo que para não ficar batendo na mesma tecla e terminar pulando da janela, nada me parece mais justo que sonhar com um velhinho bem velhinho que arremessou os óculos num bueiro só para não ver como a sua cidade tinha se tornado feia.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Imagens de Philippe Garrel

Recentemente fizemos um especial sobre Philippe Garrel e durante os dias que assisti aos inúmeros filmes da carreira do diretor francês, senti-me na obrigação de salvar algumas imagens, sequestrando a singular atmosfera de seu universo poético e certo de que esse recorte carregava ontologicamente a natureza de seu cinema. Numa entrevista em ocasião do lançamento de A Fronteira da Alvorada, Garrel, que sempre se mostrou atento para as relações entre a morte e o amor, comentou que "quando a arte é a totalidade da sua vida, temos de testar um pouco os limites para poder criar, para exercer nosso papel plenamente e podemos ser rudes sem intenção, sem nos apercebermos, mesmo que tenhamos muito cuidado. Ninguém sabe porque é que as pessoas cometem suicídio e não acho que um suicídio no cinema incite as pessoas a fazêlo. Pelo contrário. A arte faz-nos querer viver mais, faz com que os jovens não façam coisas estúpidas, não acredito que teria cometido suicídio, mas sem dúvida foi a arte trágica que me salvou".