domingo, 21 de agosto de 2011

La Naissance de l’amour (França, 1993), de Philippe Garrel


(Publicado originalmente no Filmologia)

ELA: “Você me ama?”.
ELE: “Sim”.
ELA: “Então, prove”
ELE: “Eu posso fazer um filho com você“.
ELA: “Não quero um filho, quero um beijo. Tchau"


Quase nunca conseguimos prever o instante, quando os segundos mostram sua exatidão cirúrgica, em que teremos uma conversa decisiva em nossas vidas, dessas que estilhaçam cápsulas de proteção e influenciam sensivelmente os rumos ou lembranças de uma relação passada. Às vezes nos preparamos em demasia, ensaiamos todo discurso, montamos um circo, alinhamos o escopo de incertezas, escolhemos palavras bonitas e simplesmente nada acontece. Da mesma maneira, se nos lançássemos ao desejo de isolar espaços curtíssimos de duração na história entre duas pessoas ou de toda humanidade, esquadrinhando gestos que atestam um sentimento, um desabrochar do amor incondicional, a impossibilidade de se apaixonar depois de trinta e quatro beijos ou o insurgente desapego que cresce a cada café da manhã, correríamos o risco de passar muito tempo sem resultados, absolutamente cegos para com o instante fugaz, tolos e incapazes de sequer reconhecê-lo. Diante da dúvida, Philippe Garrel saca sua câmera e espera. Se não nessa estação de trens, talvez em outro breve passeio, numa outra cama desforrada, num telefonema secreto ou numa despedida de portas fechadas. Na sequência inicial de La Naissance de l’amour, Marcus (Jean-Pierre Léaud) vai comprar cigarro, Paul (Lou Castel) o acompanha e abrindo espaço dentro da troca desinteressada de palavras e perguntas, emerge um protodiálogo – que está longe de significar “menor que um diálogo”, apenas “não calculado como um diálogo” – onde os propósitos racionais menos importam, cada palavra serve para contornar uma intimidade que desfaz, refaz e liberta a dramaturgia específica – o lugar onde a vida vira linguagem – da relação entre aqueles dois amigos. Na caminhada até a barraca, alguma coisa acontece e não de forma tão clara como perto dos 20 minutos, quando a tela é tomada por uma atmosfera absurdamente límpida, o nascimento de um filho é metaforizado como nascimento do amor, afirmando que se Tarkovski defende o cinema como arte de esculpir o tempo – tese desenvolvida em outros ângulos na teoria do cinema de Gilles Deleuze – Philippe Garrel se equilibra entre esculpir a luz no tempo e o tempo da luz.

O cineasta francês no início da década de 1990, tal qual em Le Coeur Fantôme, parece ter superado duas fases: os pujantes “anos Nico”, de um cinema abertamente experimental e a segunda, de prestar contas com as assombrações desse período, ainda muito apegado, lançando, senão, um olhar amoroso. Garrel aqui se esgueira num campo de ruínas ideológicas, num resignado fracasso das utopias, quando filósofos e historiadores se acostumaram a encaixar “pós” como prefixo de “tudo”. Paul olha desolado um cartaz rasgado com os dizeres “É tempo de lutar” e move a mão para descascar um pedaço, os grupos foram dissipados, o mundo afundou na falta de um sentido claro de transformação. No entanto, a luz continua, o filme aponta para Raoul Coutard, o diretor de fotografia, como reminiscência do tempo em que definia as paletas da Nouvelle Vague. Marcus, por sua vez, soa verborrágico e com um discurso bastante atento para a condição do homem contemporâneo: “Lênin estava certo, os capitalistas vendem a corda para que nos enforquemos”. Completa, no entanto, “que o difícil será eles – os capitalistas – nos darem tempo para fazer o laço”. As personagens assumem um pessimismo, quase desesperado, que só constata a imobilidade diante da falta de projeto, da obsolescência de armas, gestos e manifestos empunhados na juventude reverenciada em Les Amants Réguliers. O passado em La Naissance de l’amour assume diferentes formas: é trauma do amor perdido, morto num hospital anônimo; é a marca de um amor que brota e murcha; é a foto antiga do casal que cristaliza a inexistente felicidade no cotidiano atual. É também um tempo de luta que se afasta, afasta e nos afasta, um tempo em que eram mais loucos, fumavam ópio, jogavam coquetéis molotov; as garrafas de whisky barato se acumulavam na varanda e mesmo pairando sob o medo de morrer, a dimensão do sofrimento estava sempre lá longe, perto do fim. Só que o fim chega e passa e entregues a desesperança completa parecem se perguntar: Quantas noites de amor existirão depois do fim? Diante da dúvida, Philippe Garrel saca sua câmera e espera.

Se o amor nasce, cresce e embrutece, enquanto o corpo amado expande suas curvas, vira objeto de contemplação e emplaca uma desconcertante beleza, ele também morre, imprime o receio de voltar a se entregar e, no intervalo de quatro a cinco segundos, com os rostos melancólicos transformados em paisagens, o enigma do permanecer ou desistir invade a tela. Sufocado pelo casamento, Paul fez do cotidiano um laço no seu próprio pescoço, detesta a mulher, detesta cada simpatia mal colocada e abre de maneira extremamente franca o peito para qualquer acaso, para as amantes que mal conhece e coleciona. Acordam e o “eu te amo” nada mais é que um cumprimento autômato, ele alenta um desinteresse pela casa, não lava os pratos, ela reclama, mas sua curiosidade pelo mundo só aumenta. Paul acaba seu casamento, corre na rua com sua maleta enquanto seu filho grita “papai, papai” na janela, começa um relacionamento com uma moça muito mais jovem, um pós-amor, caminham pelas ruas sob as luzes, não cansam de trocar olhares, beijam-se, adentram o circuito de declarações, se desviando dos erros cometidos no passado – o rastro de mentiras, um desorientar de frágeis omissões – certos de que rememorar representa dor para quem não estava “”. Há, entretanto, quem não saiba se despedir e prolonga e alimenta as relações num ímpeto de ausência. Marcus foi abandonado. “Por que você me deixou?”. Ele precisa saber para entender uma vida através de uma resposta, tal qual Garrel que entende situações através de instantes em seus filmes. “Foi por causa de você e do seu enorme ego”, ela responde confirmando a terrível condição do egoísta: ele passa a ser amoroso apenas quando sente que não é mais amado e está ali para pedir sempre por uma última noite de amor. Só que ela tira a roupa, ele não reconhece a lingerie. O cheiro lhe pertence, mas aquela imagem erótica lhe é estranha. Diferente do que pensa Marcus ao dizer que os “encontros não importam, o que acontece depois é que importa”, no cinema de Philippe Garrel, um cinema de elipses, preciosas elipses, os encontros importam, as caminhadas importam, não precisam ser exatamente os primeiros contatos ou os mais histéricos, mas aqueles em que toda uma trajetória silenciosamente parece se inscrever. Eles se conheceram porque ela deu o primeiro passo. Separaram-se porque ela o deixou.

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