domingo, 21 de agosto de 2011

Le Révélateur (França, 1968), de Philippe Garrel)


(Publicado originalmente no Filmologia)

Revelar:
1. Tirar o véu a.
2. Declarar; descobrir.
3. Manifestar.
4. Denunciar.
5. Fazer conhecer (o que era ignorado ou secreto).
6. [Fotografia] Fazer aparecer a imagem no negativo ou numa cópia fotográfica.
7. [Antigo] Conhecer carnalmente uma mulher.
8. Ser revel.
9. O mesmo que rebelar.
v. pron.
10. Manifestar-se; patentear-se; mostrar-se.

Quando nos deparamos com os primeiros experimentos cinematográficos de um diretor, além de nos ambientarmos no frescor ou ingenuidade das motivações de sua juventude e nas curiosas instabilidades de suas emoções, no caso particular de Phillippe Garrel, vinte anos em 1968, vinte anos em Le Révélateur, nos vemos rodeados de um exercício de encenação da vida que é encenação do mundo que é encenação do filme. Há no seu ímpeto de refletir, na pressa das personagens, na contestação dos amigos, uma clara e grandiloqüente incapacidade juvenil de se conformar, um fora de campo dos desejos, que nos remete ao olhar minimalista, contido, mas nostálgico de Les Amants Réguliers. Os canhões luminosos do início de carreira investigam espaços veladamente históricos, rabiscam o entorno de antigos campos de concentração com claridade e escuridão, se afeiçoando e se culpando pelo culto à beleza ante as ruínas de uma tragédia incurável. Os garotos e garotas que sonhavam com a mítica Zanzibar – entre eles Michel Fournier, o diretor de fotografia – manifestam suas presenças: são crianças que não respeitam os códigos canônicos do cinema clássico, desviantes da consciência moral hegemônica, improvisando em imagem, rastros e rastros da revolução que os cerca. Le Révélateur recompõe a cada fotograma um corpo de cinzas.

No universo da insubordinação da criança pequena que aprendeu as regras sociais, mas fingiu que não, do ódio capaz de arremessar todas as agruras, dos lapsos reluzentes, a camada - ou desculpa - diegética é arruinada pelos indícios de espontaneidade: a criança olha para a câmera, entrega uma flor para alguém da equipe, brinca sob os olhares apáticos dos adultos. Num campo permeado de distopias, numa previsão assustadora, acuado, o homem corre e chama a mulher; acuada, a mulher corre e chama o filhinho; bon vivant, o filhinho corre e chama a câmera. A câmera voa. E se o filme metaforiza uma fuga dos conservadorismos, se depois algum personagem de Garrel comenta que não pode ter filhos, pois prefere a revolução, a família é das instituições que mais o cineasta provoca sem, ainda assim, conseguir romper. Mesmo nos tempos primevos, de manifestos cobrindo as paredes, do ópio, se a fuga na vastidão do cenário revela suas vanguardas, imprime na imagem suas cadências e sua incomunicabilidade arquitetada, assume também os seus clichês comumente varridos para debaixo do tapete. Le Révélateur é a cada fotograma o oximoro que se revela.

Numa entrevista ou num trecho de livro, Phillipe Garrel comentou certa vez que seu filme gira em torno do que a psicanálise chama de “cena primitiva”, ou seja, a cerimônia litúrgica da primeira vez, o nascimento de um filme, o nascimento de uma criança, a primeira vez que o filho vê seus pais fazendo amor. Graças a um erro de tradução, o Apocalipse – aquele que sempre acreditamos ser o fim do mundo – não recebeu o nome de Revelação – especificamente Revelação Divina – momento chave em que os segredos escondidos dos homens – o sentido da vida, o pós-morte, o futuro, a cura das angústias – é decifrado pela primeira vez a um único indivíduo. A criança não é apenas filho, é profeta, flutua, enquanto os pais se debatem numa corrida, obscurecidos e desfocados, com os braços abertos em busca da iluminação. Garrel, vinte anos em 1968, vestígios de uma época, homem fragmentado por seus sonhos juvenis, reorganiza e perambula a cancha de alienações e inquietações com sua obsessão pela simetria. Aliás, não só simetria, também – palavra maldita, mas impossível de ser aqui negada – poesia.

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