quarta-feira, 17 de agosto de 2011

"Sua caixa postal é a minha galeria"


A frase do artista alemão Robert Rehfeldt atesta a generosidade envolvida no modus operandi da arte-correio, movimento que consistia em se apropriar dos meios de intercâmbio comuns a todos - usados tanto por trabalhadores, como por titias e vovós - para burlar bloqueios e formular redes políticas sem deixar de lado, é claro, o carinho singular existente entre amigos que costumam trocar cartas. Inúmeros trabalhos, pequenas obras inscritas no resultado e no percurso, chegavam aos seus destinos com endereços de outros interessados, proporcionando a multiplicação constante de itinerários. As fronteiras nacionais e os limites burocráticos eram absolutamente desrespeitados. No entanto, essa frase também atesta a distância que tal movimento tinha dos espaços expositivos oficiais, especialmente durante o seu auge na década de 1970, consolidando um papel marginal, atravessado de embates, ruídos e intenções. Numa espécie de retrospectiva-manifesto, o pernambucano Paulo Bruscky relembra que "a arte correio surgiu numa época em que a comunicação, apesar da multiplicidade dos meios, tornou-se mais difícil, enquanto que a arte oficial, cada vez mais, achava-se comprometida pela especulação do mercado capitalista, fugindo a toda uma realidade para beneficiar uns poucos: burgueses, marchands, críticos e a maioria das galerias que exploram os artistas de maneira insaciável". Hoje, mesmo com a dificuldade em lidar com esse material, de muitas vezes não saberem como mostrá-lo ao público, como contextualizar a situação ou mesmo, internamente, de não saber como catalogá-lo, os museus vem dando certa visibilidade - e naturalmente institucionalização - a acervos específicos. Se nesse processo a política se perde, a transgressão se apaga, toda insatisfação vira ruína, isso já é outra conversa.

A arte-correio esteve sempre ligada ao manuseio de envelopes, carimbos, desenhos, rabiscos, fitas cassete, brincando com dimensões absurdas de papel e baseando-se em ocupações e frases sutilmente irônicas: “se não receber, remeter a um lugar melhor” ou abaixo do selo escrever "ou não sê-lo". Decerto fundou suas garras teóricas no conceito de rede tão em voga na contemporaneidade, apostando, assim, na inexistência de um centro e na ramificação de pontos, onde a noção de arte se desloca para a comunicação, para a troca, abandonando a ideia de obra individual e deixando prevalecer o princípio, cooptado do filósofo canadense Marshall McLuhan, de que “além de mensagem, o meio funciona também como base e extensões de nosso corpo". Com o passar dos anos, os artistas foram incluindo tecnologias recém-surgidas como o fax, reforçando um debate sobre a “desmaterialização e materialização da obra em qualquer lugar do mundo", cuja atualização plausível vem a ser o desenvolvimento das comunicações a partir da internet 2.0, da insurgência das redes sociais, do uso cotidiano do e-mail, da própria indistinção entre os estatutos do real e do virtual. A curadora Cristiana Tejo pondera que "compreender a historicidade de uma forma de fazer arte colaborativamente em rede e fora das instituições convencionais de arte antes do surgimento da grande rede (WWW) é uma tarefa incontornável para nos dar condição de compreender o momento em que vivemos”. Além disso, para enviar uma carta, diferentemente do computador dentro de um quarto dentro de um apartamento dentro de um edifício dentro de um condomínio, ou seja, no extremo da conexão e do isolamento, é precisar sair na rua, lidar com espaços públicos, encontrar 'outros' aleatórios.

Sem tomar conhecimento dos contornos tradicionais que definiam o que era arte do que não era arte - basta lembrar de Paulo Bruscky dentro de uma vitrine com a faixa 'o que é arte e para que serve?' - a arte-correio se uniu de forma pioneira, claramente dando sequência aos passos de Duchamp, aos anseios iniciados pelo Grupo Fluxus, que movimentaram o período no intuito de desmantelar as formas, legitimações e estatutos imutáveis da obra artística. Se hoje os suportes das artes visuais, tamanha variedade, não podem simplesmente ser inventariados ou catalogados, a semente disto estava lá. Além disso, os regimes ditatoriais na América Latina também fortaleceram a atuação política do movimento, devido ao fato dos artistas em rede conseguirem demonstrar como tais regimes, as democracias liberais e os governos socialistas se banhavam cada qual num mesmo decibel de intolerância, quando se viam diante de um afronta estética, moral ou social ("Londres em chamas"). Bruscky, por exemplo, comenta que foi preso duas vezes, quase nunca conseguia fazer inteligível seus argumentos de defesa, numa dessas ocasiões, o interrogador o ameaçou dizendo que tinha “vários especialistas em assassinato por morte natural”. Só que a generosidade do movimento não os abandonava nesse delicado momento: “quando um artista era preso, a rede pegava o endereço do presidente, do ministro da Justiça e dos comitês de anistia, para enviarem cartas que vinham de todo mundo pedindo a libertação, de tal modo que se a pessoa sumisse, o rebuliço teria uma repercussão internacional”. A arte-correio, arte-postal, arte a domicílio de - ou entre - Ken Friedman, Armand Fernandes, Paulo Bruscky, Robert Rehfeldt, Daniel Santiago e tantos outros, de uma maneira ou de outra, vinga todas as cartas de amor, as desenhadas de Van Gogh para seu irmão Theo, os poemas postais de Vicente do Rego Monteiro e os destinatários poéticos de Mallarmé.

2 comentários:

R.R.Dias disse...

Bom texto!

A coisas que já vi do Paulo Bruscki me levantaram alguns questionamentos que, lembrando agora, fazem da arte dele algo importante pra mim.

De vez em quando cruzo com ele em situações cotidianas na Boa Vista. Acho engraçado e tento ser discreto, pra não assustá-lo. ehehe

Rodrigo Almeida disse...

acho que ele não deve ser dos mais fáceis de se assustar. :P