sábado, 31 de dezembro de 2011

Jurando de mindinho

(Publicado originalmente no Filmologia)
- Você jura?
- Sim, eu juro.
- Pelo nome de sua mãe?
- Sim.
- Mesmo que ela vá para o inferno porque você mentiu?
- Sim, eu juro.
- Jura de mindinho?
- Juro de mindinho.

Sempre que voltamos aos filmes da infância, corremos o risco de, em menos de duas horas, sabotarmos em definitivo um carinho mantido seguro por anos, de maneira que precisamos antes de partir nessa jornada de redescoberta e decepção, cartografando os fios imaginários que ainda nos ligam às crostas da primeira idade, sermos suficientemente sensatos no momento de distinguir entre os baús que devem ser remexidos daqueles que permanecerão intocados. De uma forma ou de outra, é bom lembrarmos que existem as produções imponentes, que podem ser vistas e revistas sem perdas sensíveis no panteão, assim como as que funcionam melhor enquanto lembrança, como se estivessem destinadas ao timing exato de serem assistidas em determinada idade, na situação específica da Sessão da Tarde, com aquela bela fadiga pós-almoço, esparramados no sofá, vestindo a farda gasta e rabugenta da escola que só iríamos tirar no final da tarde, depois do terceiro ou quarto grito de nossas mães. Há, no entanto, uma terceira variação: são os filmes que continuam amados, mas cuja condição de amor depende exclusivamente do fato de terem sido importantes durante a infância, como se o princípio de prazer fosse baseado na emulação de uma espectatorialidade perdida, gerando a partir da impossibilidade de resgate um saudosismo tão intenso que é capaz de transcender, aproximar e afetar idiossincrasias temporais.

Não sei bem porque comecei esse texto como se precisasse me desculpar, afinal de contas, estamos num terreno plenamente seguro, não posso garantir uma longa meditação esquadrinhando plano a plano de Conta Comigo (EUA, 1986), mas ao menos posso dizer sem medo, antes de todos os movimentos escorregadios e secundários, que esse é nada mais, nada menos que o “meu filme predileto sobre infância” e também “o filme predileto da minha infância”, além de que, junto a Cavaleiros do Zodíaco, é o responsável oficial pelo meu entendimento até hoje do que significa amizade. Toda vez que vejo, revejo, prevejo, cada sinal do mundo que ele aponta se transforma naturalmente numa potencial lembrança, adaptando uma marca definitiva da novela que serviu de inspiração, O Corpo, de Stephen King, que possui uma estrutura propicia a, adultos ou crianças, nos encharcarmos na melancolia, seja porque o tempo passou, seja porque o tempo está para passar. É quase como se a vida acontecesse apenas aos doze anos, que num minuto estávamos vivendo, aprontando, sendo protagonistas, e no minuto seguinte passamos ao posto de meros observadores. Assisto ao filme inteiro com os olhos marejados, cada miudeza abre um universo de recordações, basta dois amigos andarem lado a lado e um deles dar um chute na bunda do outro pelas costas ou um desentendimento cujas as pazes são firmadas jurando, jurando, jurando de mindinho.

O meu fascínio por Conta Comigo, ontem e hoje, decorre racionalmente de dois motivos. O primeiro é o absoluto e singelo clima de fraternidade entre os quatro protagonistas, naquela linha bem cafona – aliás, é final de ano, é a temporada oficial da cafonice – de pensar os nossos amigos mais próximos como a família que nos deparamos no mundo e trazemos para perto da gente, pessoas com as quais compartilhamos vivências porque entendemos que as vivências só adquirem sentido se compartilhadas. Nesse contexto, estamos sempre brigando e fazendo as pazes, tirando onda de qualquer besteira, debochando, falando da mãe, batendo frio na barriga, precisando de um ombro firme, dando foras entediados (“ha-ha, muito engraçado, só que eu esqueci de rir”), rindo do que os outros falam sem clima constrangedor, na maioria das vezes seguindo uma espécie de rodízio, todo algoz encontra seu dia de vítima, onde num segundo de descuido, dois ou três se juntam para achincalhar o membro restante. As imagens assumem um poder espectral, como se carregassem internamente portais para dezenas de outras ocultas: vemos os garotos levando uma carreira de um cachorro (quem nunca?) e nos lembramos, como símbolo do que é viver a adrenalina de verdade, dos dias que falamos “pio” de olhos fechados, enquanto nossos pais putos da vida gritavam “e não quero escutar nem mais um pio”. Pio.

O segundo motivo é a aproximação espacial: boa parte dos filmes desta edição do Filmologia possui uma casa da árvore, esse mítico lugar-refúgio-esconderijo de tradição norte-americana; na minha rua tinha uma ruína de uma dessas, recôncavo de um grupo de amigos da geração anterior. Na minha época, a escada já tinha caído, parte do piso cedido e o próprio tronco havia se tornado um cemitério de pregos. Diferente de Os Goonies, onde a instância infância é confundida com a instância estupidez, Conta Comigo me lembra os passeios na praia antes dos adultos acordarem, as subidas nas árvores, a escolha dos melhores lugares, as andanças de bicicleta na beira do açude de Brennand, a professora nos mostrando como funciona um ábaco, as invasões no hospício abandonado da praça da Várzea, tudo isso entrecortado por alguma safadeza e por conversas sérias e banais tomadas com o mesmo respeito (- quem venceria numa briga, supermouse ou superhomem? – Um desenho nunca venceria uma pessoa real). O caso é que todo aquele universo parecia uma extensão da minha rua para dentro da planície da televisão, meu bairro sempre teve esse clima de interior da cidade, sentia algo além de identificação quando o narrador comentava que morava numa “cidadezinha, mas para mim era como o mundo inteiro”, porque por muito, muito, muito tempo, quem dera que fosse para sempre, eu era o menino da rua e somente da rua, que um dia resolveu ir além e quando voltou se deu conta que seu reino era bem menor do que imaginava.

O filme carrega uma delicadeza em seu olhar, sem precisar espernear “olha só sobre o que estou falando”, no que se refere a virada da pré-adolescência para a adolescência de quatro garotos que são quatro arquétipos, quando nos damos conta que o mundo não gira em torno de nosso umbigo, que nossa sensação de pertença é apenas passageira. Olhamos nossos irmãos mais velhos e percebemos a ausência de seus amigos de infância, Conta Comigo acompanha uma aventura que nada mais é que a constatação da separação iminente, como se apontasse para os momentos que nos damos conta, lá pelos doze anos, que as amizades são como “garçons que sempre estão entrando e saindo de nossas vidas”. Misturado às dificuldades familiares de cada um, o que tornava a amizade cada vez mais íntima, e no encerramento do ciclo que deixa mais nítido o limítrofe da lenda e da realidade, vamos aos poucos se despedindo de nossas obsessões infantis, os dinossauros são deixados de lado, a Segunda Guerra Mundial perde seu encanto, os extraterrestres se tornam uma fé subterrânea, esconde-esconde pura lembrança e as vitórias, ou as próprias jogadas do War e xadrez, cada vez mais raras. Sempre vai ser complicado justificar o motivo de nosso amor por determinados filmes e, em meio a trilha sonora com Everyday, Come Go with Me, Stand By Me, Mr. Lee, Great Balls of Fire e Lollipop, Conta Comigo instaura um lugar-memória, uma falsa caixa de pandora, um rabisco amarelado desses que não cansamos de olhar.

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