segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Cronista social de traços firmes


Portinari é provavelmente o pintor brasileiro que primeiro aprendemos a reconhecer como um pintor brasileiro, não apenas pela consistência de seu imaginário temático comum nas aulinhas de estudos sociais, como pela incrustada dívida - há quem prefira usar a palavra "compaixão" - que parecemos pagar quando nos vemos diante das figuras paupérrimas, esfarrapadas e sofridas de suas telas. Depois do Cristo na cruz, a mãe com os braços para o alto em Enterro na rede, depois de Enterro na Rede, a fome e as moscas que cercam Os Retirantes, depois de Os Retirantes, a robustez dos pés e mãos de O Lavrador de Café, cuja réplica pendurada na sala de jantar da casa de praia da minha família, causava-me um desconfortável combo de espanto e perseverança. Há quem chame a fisionomia das personagens de Portinari de pintura deformista, num direto diálogo que ele estabeleceu, durante sua estadia na Europa, com os traços de Pablo Picasso, figura decisiva no processo de maturidade que o levou a abandonar os resquícios de classisismo, os vícios de um retratista de encomenda para adentrar, ao seu modo, na modernidade. "O homem de Brodowski não esqueceu de Brodowski", escreveu Manuel Bandeira em 1932 ao visitar a sua exposição na galeria do Palace Hotel, primeira em que o pintor retoma lembranças da infância por meio de um primitivismo sentimental, esboçando um programa artístico que ampara indagações político-sociais através da passagem do trem, das festas, dos bailes, enterros, do circo e das procissões. Com o correr dos anos, no entanto, acumulando conhecimento e atirando, alguns dos nossos fascínios, resguardados num passado compartilhado ou individual, vão sendo amargamente esfarelados até emularem uma situação de inexistência. Decerto, se fosse para comentar atualmente sobre a representação das classes mais baixas da sociedade no campo artístico, sem entrar no debate do urubu que voa e do urubu que ataca, as referências cinematográficas seriam as primeiras a surgir. Seja por meio do neo-realismo italiano, que após a Segunda Guerra Mundial revelou uma face poética dos indivíduos que sofreram e lutaram contra o governo fascista no país, seja pelo movimento do Cinema Novo, que através da figura emblemática, para não falar profética, de Glauber Rocha desenvolveu um projeto político que visava colher no subdesenvolvimento uma autêntica problematização estética.

Apesar de estarmos viciados na cultura visual do século XX, aquartelados numa nostalgia moderna, a pobreza como inspiração artística ou diretriz existencial possui uma história mais antiga e para não voltarmos até a jornada de Sidarta sob o regime da ascese, parece-me importante enquanto movimento pré-moderno, lembrar ao menos do realismo literário do século XIX. O livro Os Miseráveis, de Victor Hugo, por meio de um exímio entrelace narrativo-descritivo que nos mostra o peso das galés sobre os ombros, ergue-se como referência definitiva, tendo sua apropriação tupiniquim aos trancos e barrancos na figura de Aluísio de Azevedo, especialmente em romances realistas / naturalistas como O Cortiço e O Mulato. Seguindo essa mesma tendência, Cândido Portinari, que faleceu há exatos 50 anos, ocupa uma posição de destaque, graças aos seus quadros representando famílias nordestinas arrasadas pela seca, trabalhadores negros em campos de café ou captando todo sofrimento do grito de uma mãe desesperada após perder seu filho para a fome. Não é de se espantar que já com a carreira estabelecida nos anos 1940 e responsável por difudir entre os brasileitos uma alegoria firme de brasilidade, tenha se aproximado do ainda clandestino Partido Comunista Brasileiro, ao lado de Jorge Amado e Caio Prado Jr, se auto-exilando no Uruguai entre 1947-1951 por conta do acirramento da perseguição política pós Estado Novo. Só que a história começa um pouco antes, afinal o artista nasceu em 1903 nas proximidades de Brodowski, interior de São Paulo e era filho de imigrantes italianos que vieram para o País no início do século XX para trabalhar em plantações de café. Portinari é totalmente Terra Nostra. Aos 14 anos de idade, a região recebeu uma trupe de pintores e escultores italianos, cujo ofício era restaurar igrejas e ele terminou sendo recrutado como ajudante (depois de abandonar o colégio antes mesmo de terminar o primário). Essa seria a primeira experiência com arte do futuro pintor, muralista e desenhista, que preferia receber a fazer visitar, costumava usar meias de cores fortes em contrapartida aos suspensórios, colarinhos, gravatas e abotoaduras. No ano seguinte, Portinari partiu para o Rio de Janeiro para estudar na Escola de Belas Artes e antes de alcançar a maioridade, no início dos modernos anos 1920, já tinha sido reconhecido em diversos jornais.

No tempo que esteve ligado à Escola e como pode ser claramente notado na tela Dança na Roça de 1924, o pintor mantinha ainda características diferentes das que viriam torná-lo um cânone, com elementos acadêmicos, retrógrados, acomodados, de tal maneira que sequer participou ou mesmo sentiu o impacto da Semana de Arte Moderna de 1922, realizada em São Paulo, que reuniu uma boa parcela da vanguarda brasileira (mais especificamente, paulistana). Apenas quando seguiu para uma temporada de dois anos em Paris, convivendo com artistas como Van Dongen e Othon Friesz e conhecendo Maria Martinelli, uma uruguaia com quem viveria o resto da vida, é que Portinari muda radicalmente sua forma de pintar e suas intenções estéticas. Alguns estudiosos apontam a distância de suas raízes como a força mobilizadora de seu mergulho nas mazelas e agruras da sociedade, passando a se dedicar firmemente à representação de caráter social após seu retorno ao país. Quase antecipando o papel que o menino de Brodowski viria desempenhar e o espaço que ocuparia na vanguarda moderna, Mário de Andrade critica a arte brasileira da época (até 1930) por carregar “uma ausência de arte social, que reforça um diletantismo estético tipicamente burguês”. O pintor, ao lado dos escritores Rachel de Queiroz, José Lins do Rêgo ou especialmente Graciliano Ramos através de Vidas Secas, quebra essa sistemática formalista, assumindo uma postura firme diante das desigualdades da nação, sem abdicar de particularidades regionais que lhe interessavam e menos ainda das influências cubistas assumidas fora do país. Lembrado por sua série Retirantes, por quadros como O Lavrador de Café e Criança Morta, todos capazes de impor uma culpa compartilhada entre os passantes, Portinari alcançou reconhecimento internacional, sendo responsável por uma produção de quase cinco mil quadros, fazendo com que apresentasse a partir de 1954 uma intoxicação pelo chumbo presente em suas tintas. Terminou falecendo em 6 de fevereiro de 1962 ao não seguir as recomendações médicas de parar de pintar, enveredando num estágio terminal de envenenamento, após concluir dois murais de catorze metros de altura chamados de Guerra e Paz.

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