domingo, 25 de março de 2012

Farda

Adelma é cabeleireira. Adelma tem uma irmã chamada Adilma. Adelma folga nas quartas e domingos, gosta de curar a ressaca do sábado com cerveja e detesta fazer cortes especiais em clientes carecas. Eles esperam que Adelma, munida de um pente e uma tesoura, faça o milagre do cabelo em suas cabeças. O caso é que todo mundo se mete na vida de Adelma, ela recebe mais conselhos que as mulheres da igreja do padre Helder, inclusive, nas quartas e domingos, quando está de folga, Adelma é o grande tema das conversas das outras funcionárias. Passam horas e horas tricotando tin tin por tin tin da vida de Adelma, discordando, concordando e apostando em cima dos acontecimentos mais recentes passados pela amiga. A irmã de Adelma, Adilma, fez de tudo para ela, Adelma, se casar com um rapaz trabalhador do Alto do Capitão, Ademar. Enfim, casaram, mas poucos meses depois, Ademar teve um problema no trabalho, foi acusado pela secretária do patrão de ter furtado um material do estoque. Ademar não pensou duas vezes e ofendido pediu demissão. Tinha uma honra a zelar, mas depois de passar semanas procurando um novo serviço, tinha experiência com limpeza e segurança, estava vivendo o limbo de não se achar bom o bastante. Adilma então virou o jogo e não parava de sussurrar no ouvido da irmã: "Adelma, deixa de ser besta, mulher, você precisa de um homem para ajudar nas contas, não para gastar o que é seu. Se liga, Adelma". Claro que havia algo de hipócrita nas acusações, afinal quando saíam juntas, Adelma e Adilma, às vezes Adelma, Adilma e Ademar, quem sempre terminava pagando a conta era Adelma. Num sábado, depois de cortar sei lá quantos cabelos, Adelma chegou em casa cansada, colocou a única farda de molho num balde verde, mas o marido tinha preparado uma panelada de feijão preto, com tudo que tem direito, de forma que Adelma andando já de calcinha não teve escapatória, cancelou o mitigado sono, tomou aquele banho, chamou as amigas por cima do muro, botaram o som no quintal e se entupiram de comida, cantoria e cachaça até amanhecer. Adelma terminou deitada com seu nego, Ademar, fazendo amor até mais tarde, apagando absolutamente nus com o sol resplandecendo em seus corpos. Quando Adelma acordou, Adelma desceu o morro e passou o dia na casa de Adilma, tomando umas cervejas para limpar o corpo da noite anterior e escutando umazinha sem sal que apareceu por lá dizendo que tinha conhecido Zezé di Camargo no camarim de um show no Clube Português. "Ele me disse que nunca tinha contado isso para ninguém, mas vocês sabiam que É o Amor nasceu quando ele estava pensando na Maria Bethânia? Quer dizer, em uma música dela, chamada Negue. Eu nem conheço, mas ele disse que os primeiros versos surgiram de uma vez só: eu não vou negar que sou louco por você, sou maluco para te ver, eu não vou negar. Isso faz uns vinte anos, ele disse que tinham na época várias músicas, mas o produtor queria um sucesso, daí ele chegou em casa, disse que deu aquele comichão e assim nasceu. Pra você ver, né? Uma música tão bonita e nasce assim tão rápido”. Adelma sorriu, mas não estava realmente interessada, bebeu mais uns doze copos e terminou dormindo por lá mesmo. Na segunda, acordou para trabalhar, esqueceu a carteira na casa de Adilma, subiu o morro com pressa e lembrou que tinha esquecido de tirar a única farda do molho. Ficou desesperada, torceu a roupa o quanto pode, colocou no sol, o sol não estava lá essas quenturas, ligou para a chefe, explicou a situação e pediu para trocar a folga da quarta para a segunda-feira. A chefe não deixou, disse que ela podia chegar um pouco atrasada, trouxesse um ferro de passar roupa, porque chegando no salão, Adelma secava com o secador, depois Adelma passava a roupa e mesmo que ficasse molhadinha, Adelma ia ter que trabalhar de farda. E assim foi.

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