quinta-feira, 8 de março de 2012

Infância como utopia



Uma infância potencial habita em nós. Quando vamos reencontrá-la nos nossos devaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas possibilidades. Sonhamos tudo o que ela poderia ter sido, sonhamos no limite da história e da lenda. (...) Essa infância, aliás, permanece como uma simpatia de abertura para a vida, permite-nos compreender e amar as crianças como se fôssemos os seus iguais numa vida primeira. Gaston Bachelard. Poética do Devaneio, 1996, p. 85.
Os primeiros anos de nossas vidas marcam um tempo em que os sonhos mais inocentes ainda são permitidos, a criança não assimilou as repressões e normas que vão se enraizando individual ou socialmente, de modo que o comportamento cotidiano demonstra uma liberdade de quem não apenas copia ou deseja copiar o universo dos adultos, mas desenvolve uma poética de invenção própria; por vezes, antagônica. Nesse sentido, os vídeos produzidos por Nan Goldin, Cao Guimarães e Paula Trope, reunidos na exposição Infância, sintetizam essa forma de inteligência, cujas reverberações surgem através das percepções e dos deslocamentos do próprio corpo, em algum momento assumem um caráter simbólico e fantasioso, dando um contorno involuntariamente político à época em que, segundo Piaget, melhor desenvolvemos nossa criatividade. Moacir do Anjos, curador da mostra, por sua vez, ressalta que a iniciativa "trata a infância como uma utopia, uma passagem em que não fomos tolhidos o suficiente e inúmeros projetos de futuro concorrem entre si. Trata-se de um momento em que as regras são ignoradas ou desfeitas com pouco custo". 

Queridinha instantânea da geração instagr.am e de todos que curtem o lápis de cor, a fotógrafa americana Nan Goldin está em cartaz em diferentes cidades do mundo simultaneamente, apresentando em algumas delas Fire Leap, seu mais recente slideshow. A iniciativa funciona como uma caixinha de música em que deposita um discreto afeto em dezenas de fotos, produzidas nos últimos trinta anos, de crianças de seu círculo pessoal íntimo em situações que variam da melancolia infantil ao desprendimento de máscaras. Além de participar da Bienal de São Paulo de 2010 e de ver sua exposição ser censurada no Rio de Janeiro, por causa do intenso Balada da dependência sexual, a artista se tornou reconhecida pela "característica despojada da fotografia caseira ao registrar diferentes formas de família, legitimando no campo da arte o baixo padrão da imagem", assinala o curador. Evocando um ímpeto do cotidiano, as fotos alinhadas e acompanhadas de uma trilha cantada pelos infantes, incluindo o clássico Space Oddity, geram uma atmosfera de sinfonia obscura e pueril, quase como se adentrasse estados de espírito próprios de um tempo pelo qual todos nós já atravessamos. 

O mineiro Cao Guimarães, um dos nomes nacionais mais fortes no cruzamento entre arte, cinema e experimentação, conta com dois vídeos que apreendem o mundo de maneira singular, tomando o acaso das situações como forças mobilizadores de fratura da ordem oficial. Da janela do meu quarto registra uma menina e um menino em posições dúbias, pois não sabemos se são irmãos, apesar da notável aproximação familiar, ou sequer temos certeza se estão numa briga ou numa brincadeira. Há um desajuste nos corpos que nos coloca diante daquela situação terrível, geralmente vivida pelos pais, de não sabermos se devemos ou não interferir, lembrando por vezes o nervosismo da combinação entre crianças hiperativas e pais desatenciosos. Peiote segue um caminho similar: uma criança mexicana se infiltra no meio de uma dança indígena dos adultos, mas ironicamente não segue nenhuma das convenções da coreografia ensaiada, gerando uma sucessão desautorizada diante de uma manifestação cujo semblante se liga à resistência popular. Evidencia, assim, uma fluência para além da circularidade das tradições, lembrando situações típicas de qualquer boa festa.

Por fim, a carioca Paula Trope apresenta Contos de Passagem e Traslados, o primeiro vídeo reunindo entrevistas com crianças que moram e trabalham nas ruas do Rio de Janeiro, comunicando sensações menos pelas palavras e mais pelos gestos associados à falta de luz da captação precária, enquanto o segundo alinha fotografias de pequenos brasileiros e cubanos, aproximando por meio de suas projeções lugares apartados, não apenas pela distância espacial. Sua abordagem percorre um universo marginal da cidade maravilhosa, o espaço na contracapa dos cartões postais, mas sua hesitação no campo da representação gera uma sensação datada, não apenas por uma tendência documental da última década, mas especialmente pela justificativa quase burguesa - ao menos assistencialista - de aproximação patriarcal quando ali já está plenamente firmada uma distância social. O segundo projeto parece mais intenso no sentido de estimular o desejo de um imaginário criativo da tenra idade,  fazendo com que no jogo de idas e vindas com fotografias, os participantes terminem esboçando rastros de um encontro cuja robustez se desloca da escassez material para edificações de subjetividade. A nostalgia, menos como lamento, mais como projeto, desenha o itinerário da infância como (re)descoberta da utopia.

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