quinta-feira, 12 de abril de 2012

#Occupyeverything / #Ocupetudo

Ainda que tenha passado despercebida por parte da população, a eclosão simultânea e contagiosa de protestos no ano passado, com reivindicações particulares em diferentes regiões do globo, firmou-se como o maior fenômeno político contestador desde maio de 1968, avizinhando as suas considerações pelas formas de luta similares e a consciência de solidariedade mútua entre as iniciativas. A onda de mobilizações começou com a Primavera Árabe, no norte da África, derrubando ditaduras na Tunísia, no Egito, na Líbia e no Iêmen; prosseguiu pela Europa, com ocupações e greves na Espanha, Grécia e revolta nos subúrbios de Londres, eclodiu no Chile e ocupou Wall Street, o coração especulativo dos Estados Unidos, gerando frequências para diferentes partes do mundo. Justamente procurando pensar o desenrolar dessa sequência de eventos num futuro próximo, a Boitempo Editoral lançou o livro Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (R$ 10, vendido a preço de custo), com ensaios de estudiosos de diferentes áreas, como os filósofos Slavoj Zizek e Vladimir Safatle, o sociólogo Emir Sader e o teórico David Harvey. 

O estopim do protesto na Tunísia aconteceu no final de 2010 com o suicídio por imolação (ateando fogo ao próprio corpo) de Mohamed Bouazizi, um vendedor de frutas que protestava contra a apreensão de suas mercadorias, simbolizando não apenas um desespero individual, mas ressonando como um esgotamento psicológico de muitos povos em um mesmo momento. No Brasil, tivemos não apenas a sistemática repressão policial em marchas da maconha, durante a expulsão / massacre dos moradores de Pinheirinho em São Paulo, mas na própria maneira como sistematicamente o poder político vem cedendo ao poder econômico, empurrando modelos de desenvolvimento urbano cada vez menos preocupados com os direitos públicos e coletivos. Basta ver a situação de inúmeros recifenses, que sentem na pele todos os dias, a condição logística de assentamento vertical / destruição de patrimônio cultural, que resulta num trânsito cada vez maior, assim como soluções profundamente equivocadas. 

Nos diferentes países houve a mesma forma de ação: espaços públicos foram ocupados pelos manifestantes exercendo a sua cidadania, os eventos foram organizados através de redes alternativas e todo movimento parte de uma vontade espontânea sem vínculos partidários. Para David Harvey, essa passagem do mundo virtual para o mundo real é chamada de união dos corpos no espaço público e essencial para efetivar as mudanças. Zizek, por sua vez, ressalta que o ano de 2012 é importante para dar continuidade ao processo: "os carnavais saem baratos - a verdadeira prova de seu valor é o que permanece no dia seguinte, o modo como o nosso cotidiano se transforma". Assim, aponta o cuidado que os cidadãos / rebeldes precisam ter não apenas com os inimigos, mas com os falsos amigos, afinal "eles tentarão transformar os protestos num gesto moralista inofensivo". Já no belo ensaio Amar uma Ideia, Vladimir Safatle ressalta que as forças opressoras podem repelir protestantes, mas não podem destruir ideias. "Elas explodem contextos, dão novas configurações para uma relação radical e fundamental de igualdade. Manifestantes não podem ser tratados como sonhadores vazios sem a dimensão concreta dos problemas". Se a frase deles começa com "não acreditamos na proposta que vocês nos apresentam", logo se torna em "agora sabemos o que queremos".

#Ocupeestelita

Dispostos a repensar a forma como o projeto de desenvolvimento urbano do Recife vem sendo conduzido e propor alternativas aos empreendimentos encampados por grandes construtoras na Cidade, o coletivo Direitos Urbanos, atualmente com quase 3,5 mil integrantes, está organizando no próximo domingo, dia 15, durante todo o dia, o primeiro movimento estilo occupy no Cais José Estelita. A iniciativa, que vem contando com uma farta movimentação via redes sociais, especialmente Facebook, visa protestar contra o projeto Novo Recife, que pretende demolir os antigos armazéns da região para erguer quinze torres, entre prédios comerciais e residenciais de alto luxo.

A manifestação ganhou força pouco antes de duas audiências públicas, que contaram com uma massiva participação popular e fortificaram a petição online entregue na primeira ocasião (que até ontem contava com 2207 assinaturas). Entre os membros da mesa que condenavam o projeto, o representante da sociedade civil, professor Tomás Lapa da UFPE, foi enfático: "Não tenho intenção de impedir o progresso, nem a transformação necessária da Cidade, mas isso deve se fazer segundo a ética. A paisagem não é só uma imagem visual, é algo feito pela participação, pela atitude, pelas crenças, pelas práticas sociais, pelo dia a dia dos cidadãos. Aquela área não pode ficar restrita ao uso ou ao usufruto de uma pequena parcela da população". Em resumo, a paisagem do Cais, uma das mais bonitas da Cidade, não pode ser privatizada.

Ele também reforçou que "a lógica de verticalização é uma lógica que segrega as pessoas nos condomínios, eliminando completamente qualquer capacidade de circulação, de mobilidade ou de acesso direto às mais banais necessidades". Assim, a movimentação no domingo, que contará com apresentações musicais, oficinas de stencil, discussões e participação de diferentes figuras representativas da sociedade, procurará mobilizar justamente a população contra a construção desumanizada de edifícios, anotando os efeitos ampliados na vida coletiva, além de ressaltar a falta de investimentos da Prefeitura em transportes públicos e o não apoio aos meios alternativos, como bicicleta ou transporte fluvial.

Experiência urbana, experiência estética

Não é surpresa afirmar que a experiência urbana é também uma experiência estética. Se cada vez mais pessoas estão se mobilizando contra o projeto Novo Recife, com construções faraônicas no Cais José Estelita, ou contra os viadutos da Agamenon Magalhães, o impulso parte da vontade em pensar a Cidade como um espaço público a ser usufruído por toda população de maneira coletiva. No entanto, não podemos cair na simplória demonização dos prédios, apropriando-se da hipócrita lógica “quem vive em casa é bom, quem vive em edifício é lobo mau”, afinal trata-se de lançar um olhar sobre a reorganização espacial, padronizada e sem resquícios de criatividade alguma, a princípio uma discussão estética que, claro, não deixa de ser política, pois atravessa o imenso risco em aceitar um projeto de desenvolvimento da cidade ditado pelos interesses comerciais das grandes construtoras. O fato é que Recife está se transformando em um simulacro de cidade, sempre empurrando as classes mais baixas para outro lugar (Gentrification) e capitalizando cada metro quadrado no mercado imobiliário. A fileta básica de caráter público deixa de ser condição do espaço urbano, o que gera uma desmobilização da convivência compartilhada e uma cultura de shopping contaminada em todos os patamares da vida social. Cada vez mais, como é muito bem representado em Praça Walt Disney, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, espaços privados, imbuídos da segurança do lar e do isolacionismo burguês, emulam espaços públicos limpinhos em seus parquinhos, quadras e piscinas particulares. A experiência estética da cidade também pede que conheçamos nossos vizinhos, deixemos nossos filhos na escola sem precisar de carro, pede para utilizarmos as vias não como um lugar em que passamos e deixamos passar a nossa vida, mas um espaço físico e espiritual que definitivamente ocupamos, mantemos relações afetivas e cuidamos.

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