sábado, 7 de julho de 2012

Fão

Era uma típica história que apenas os mais velhos sabiam contar, mas como estavam fadigados seguindo o ritmo de suas cadeiras de balanço, nem sempre conseguiam surpreender os sobrinhos, netos e associados companhia limitada, que ao escutarem o chamado "de que o avô queria contar uma história", imaginavam um bafão em preto e branco sem dramas velozes, provavelmente inundado daqueles nomes de antigamente. Os jovens sabiam também que os mais velhos gostavam de relatar todos os detalhes, especialmente aqueles que não faziam qualquer diferença, de modo que a única chance de escapatória era dormir antes do fim, afinal não eram poucas as vezes que de tão longas, os sobrinhos, netos e associados companhia limitada sequer conseguiam identificar qual parte era realmente "a história" e qual parte era "extra-história". Seja como for, o caso é que o cemitério ficava do outro lado da encosta, porque quando a pequena cidade de Mimoso foi fundada, os mortos costumavam ser amarrados em lençóis e deixados na ponta do abismo para serem levados pela enxurrada em tempos de chuva, tempos que acometiam a região religiosamente a cada cinco anos nos meses de julho. Acontece que numa dessas enxurradas, o caminho da água mudou e ao invés de formar a tradicional cachoeira de cadáveres num abismo próximo, terminou seguindo em direção ao pobre município, não só destruindo casas e até parte da prefeitura, mas matando todas as velhinhas que estavam fazendo fofoca na rua, todos frequentadores - menos um - do boteco do Zé Bode, espalhando pedaços dos restos mortais dos entes queridos pela praça, pelas ruas e até mesmo dentro da igreja. Foram décadas até Mimoso conseguir se recuperar.

Assim, o cemitério se institucionalizou como um cemitério de verdade, a prefeitura contratou um coveiro, tumbas começaram a pipocar por todo campo antes verde e os papa-cebos voltaram a cantar. Roberto era o terceiro coveiro de sua geração, os dois anteriores estavam enterrados um pouco mais para esquerda ou duas quadras para a direita, e toda vez que resolvia fazer a ronda nos corredores sombrios trajando apenas um chapéu, como um bicho desgarrado no meio da noite, terminava resignado na capela entre um copo de conhaque e uma asia perfurante. Seus pés tortos negavam os passos na terra úmida e fofa que cobria centenas de cadáveres, vivia expulsando senhoras que invadiam o espaço para roubar terra para suas hortaliças, mas sua certeza era que cada cova aberta equivalia a um punhado arremessado em seu próprio enterro. Roberto não tinha vinte anos, não viu crescer os pêlos do corpo, só tinha deitado com prostitutas baratas e vivia ouvindo gracinhas dos bêbados que passavam o dia no Bar Ressuscitado do Zé Bode. Tinha poucos amigos, talvez porque os jovens de Mimoso se consideravam muito argutos, cheios de si, falavam de suicídio em tom de piada, bebiam cacarejando sem qualquer ínfima graça, de forma que sempre preferia se manter próximo apenas dos mortos. Talvez fosse um viciado em silêncio, seria um hermitão se não fosse coveiro, e detestava quando as beatas olhavam com compaixão quando não conseguia conter os espasmos de seu corpo afetado. Exceto, talvez, pela morena Lucinda, que lhe oferecia um jantar a cada quinze dias, algo que ele saudava como um banquete e costumava comer sem mal conseguir respirar. Naquela semana, no entanto, Roberto estava desgostoso, comeu a moranga como era de praxe, elogiou como era de praxe, mas enquanto voltava para a casa não resistiu a sua verdadeira vontade: comprou uma coxinha passada e comeu com ketchup de bisnaga.

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