sábado, 29 de dezembro de 2012

Restos (Argentina, 2010), de Albertina Carri

O Hobbit (EUA / Nova Zelândia), de Peter Jackson


A sensação horas antes de sair de casa para assistir O Hobbit era a de que estava gradualmente, talvez tenebrosamente, voltando para o ano de 2002, sendo mais preciso para o dia primeiro de janeiro, quando A Sociedade do Anel entrou em cartaz no país. Diferente daquela época, a histeria não veio com tanta intensidade antes do filme, dez anos pareciam o suficiente para encerrar qualquer ímpeto mais eufórico, de modo que não entrei na procrastinação da curiosidade minimalista sobre os rumos da produção. Assimilei apenas o básico impossível de resistir: tanto o oba oba (só que o contrário) em relação à captação hiperrealista em 48 fps (frames per second), como o repercutido lenga lenga de fãs e críticos, acusando Peter Jackson de, apenas por causa dos lucros, ter transformado um livro curto infantil numa trilogia. Pior que para quem olha de longe ou de muito perto é isso mesmo. Como queria olhar numa distância agradável, olhar para além do velho lamento sobre a indústria cinematográfica, para além dos exageros ortodoxos dos fanáticos e me focar na adaptação enquanto estratégia, arrumei um tempo dentro da rotina apertada para ler o livro de Tolkien na mesma semana. Nunca suportei o argumento de falta de fidedignidade ao original como desculpa para não gostar de um filme. Quando terminei na manhã da sexta-feira de estreia, estava ávido pelas imagens, passei algumas horas contentando-me com os trailers oito vezes ou mais, o bastante para perceber o quão estava morrendo de saudades da Terra Média. Daí nem preciso relatar o embasbacamento emocionando quando as luzes se apagaram, quando começou a trilha sonora, quando apareceram os primeiros mapas, quando os anões cantaram, quando Gandalf contou sobre a existência de apenas cinco magos – deixando-nos a pergunta de “como nasce um mago?” - e quando se desenrola a impressionante batalha do trovão (algo só sublinhado sem forma no livro, mas captado com proeza pela interpretação hollywoodiana de Jackson). 

Admito de antemão que desde pequeno meu fascínio pelos gêneros da Fantasia e da Ficção Científica, nunca consegui criar uma hierarquia entre eles, estava ligado a certo tédio desenvolvido pelo mundo material que eu habitava. Tenho a crença de que esse é o sentimento clássico das crianças que entram numa jornada inesperada em qualquer narrativa (História sem Fim; Fantástica Fábrica de Chocolates, etc). Seguindo com um punhado de referências do cinema, da televisão, da literatura, dos quadrinhos e dos videogames, transformava o cotidiano, o meu e o dos outros, num espaço imantado de fagulhas de tempos mitológicos, provindas de civilizações reais ou imaginárias, passando por universos distantes anos luz até recuperar acontecimentos históricos grandiosos. É mais ou menos assim que nasce um nerd. Durante a adolescência, confesso que passei alguns anos esperando um grande acontecimento, se necessário fosse uma grande tragédia, qualquer coisa que animasse um pouco, que movimentasse a diferença e tirasse o mundo como conhecemos da rotina. O ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 correspondeu em parte às expectativas. Seja como for, acredito que a nostalgia, pensando como uma projeção saudosa pelo que foi, pelo que poderia ter sido e pelo que poderá ainda acontecer, é a força motriz e criativa que movimenta esse embate entre o sujeito e fantasia (vide Caverna do Dragão). E a Terra Média é pura nostalgia: são os anões querendo recuperar a sua casa e contando histórias daquele tempo, é Bilbo acanhado, triste e distante, lembrando da quentura de sua lareira, é Gollum – mais incrível do que nunca, na cena talvez melhor adaptada do livro – brincando de adivinha e desesperado procurando reaver o anel roubado. Peter Jackson redimensiona a mitologia de Tolkien através de uma sensibilidade Pop, algo que desagrada os fãs radicais e que me parece a maneira mais emblemática de trabalhar esse universo, algo que ele pesa a mão e acentua em O Hobbit, uma trama mais doméstica e familiar, para aproximar do tom épico do Senhor dos Anéis

No entanto, vale dizer que, apesar das semelhanças cinematográficas, há uma distinção clara entre a narrativa de O Hobbit e a trilogia do Senhor dos Anéis, não só porque o livro foi escrito para os filhos de Tolkien e lançado no final de 1937, mas, e fazendo a primeira defesa do filme, as páginas do primeiro não se perdem em descrições ilimitadas como no segundo, as palavras vão direto ao ponto. Assim sendo, uma mesma ação que se desenrola em duas páginas ou que é apenas levemente citada termina se transformando em longas sequências, como se o diretor estivesse aproximando o argumento do livro isolado da maneira de contar da trilogia, ampliando seu domínio e mapeamento audiovisual da Terra Média. Ou seja, mesmo só adaptando os seis primeiros capítulos em Uma Jornada Inesperada, os roteiristas inseriram referências provindas de apêndices ou trechos de outros livros do autor, num claro movimento de acoplar a trilogia vindoura com a anterior. A ênfase no Necromante, por exemplo, deve render nos próximos filmes uma gênese mais detalhada de Sauron (algo totalmente inexistente no livro). De maneira geral, O Hobbit é um bom exemplar de narrativa de travessia, formato em que um grupo com uma missão segue em direção a um determinado destino, atravessando paisagens completamente diferentes, tais como florestas selvagens, descampados, pântanos, montanhas congeladas e cidades de Orcs. Um dos integrantes da comitiva, geralmente o último a decidir participar, no caso Bilbo Bolseiro, atravessa a sua jornada também passando de figura desacreditada pelos outros, ganhando pouco a pouco o respeito até se tornar uma espécie de líder. Essa premissa, aliás, é bastante próxima da aventura de Frodo, só que o pequeno amigo de Sam não assume a postura de líder, mas de salvador. São duas posições bem diferentes. 

Lendo algumas críticas depois de assistir ao filme e depois de fuçar em busca de toda merda possível vinculada, livro de receitas dos anões, livro de auto-ajuda dos hobbits, percebi a repetição de uma mesma ~opinião~: a cena inicial é ~cinematograficamente~ enfadonha. A festa inesperada é o primeiro capítulo do livro, acredito que a duração na tela seja cirúrgica no sentido de destrinchar, com a devoção e apropriação de Jackson, os hábitos de um hobbit, o contato com os anões e o jeito ardiloso do mago Gandalf. Bilbo, com todas as suas antiguidades e panos ornamentais, um ser miúdo e simpático que gosta de receber visitas, mas que jamais se meteria por vontade própria numa aventura, surge como uma parábola de todos que têm medo e receio de abandonar, temporariamente ou não, suas vidas confortáveis e acomodadas. Ele é simultaneamente a vida adulta estabilizada e a criança entediada com seu mundo. Nada mais justo que o convencimento, num contrato que fala sobre lacerações e incinerações, dure pelo menos quinze minutos. Ainda nesse momento, parece que não, mas é muito importante quando os anões começam a cantar, porque eles são um povo festivo, adoram beber e comer, mas são também um povo ferido, nômade, que teve seu lar assolado pelo dragão Smaug. Eles costumam usar das canções para anunciar uma jornada ou para comentar o que aconteceu com seus antepassados, cantam tanto a própria história como o prenúncio dos próximos passos, quase como se arquitetassem planos e lembrassem através de versos. A relação dos personagens em O Hobbit é mais de cumplicidade e respeito do que de intimidade desenvolvida por homens marcados pela guerra, como em Senhor dos Anéis (que foi lançado apenas na década de 1950, unindo a experiência ativa do autor durante a Primeira Guerra Mundial com a partida do filho para lutar na Segunda Guerra Mundial). 

Portanto, a obra de Tolkien, muito bem adaptada por Jackson, não fascina pelos seres mágicos jogados de maneira aleatória, mas pela minuciosa capacidade de criar diferentes culturas e intricadas relações dentro de um mundo mitológico imaginário (ok, que presta contas com várias culturas européias). Cada uma das raças possui elementos específicos facilmente reconhecíveis, traços que passam pelo próprio porte físico, mas adentram a indumentária, o cotidiano, a gastronomia, a moradia até atingir o ápice do detalhismo por meio das línguas distintas e dos artefatos mágicos que tensionam todo o universo da saga. O autor filólogo também criou, aliás, o que mais me interessa, uma história dessas culturas, de modo que os seres dos livros / filmes estão inseridos numa temporalidade, que envolve não apenas a genealogia dos personagens – Thorin filho de Thráin filho Thrór – mas fatos históricos de outras eras, além de manuscritos em idiomas extintos, hábitos que foram sendo perdidos; moradas que foram abandonadas. Há a própria história da criação da Terra Média no Silmarillion, um dos textos criacionistas mais belos que já li na minha vida. Então, aos 27 anos, quando achava que qualquer fanatismo bobo já teria perdido o sentido, quando as pessoas vão pouco a pouco acalmando a exposição dos sentimentos, O Hobbit, com alguns problemas como a aparição de Radagast, o vestido cafona de Galadriel, a criação do Orc vilão Azog e o nome inverossímil, Sebastian, para o porco-espinho, veio para me provar outra direção da experiência, cujo fluxo do envelhecimento não serve para as pessoas se tornarem mais secas, não é a mera substituição do deslumbramento pelo conhecimento. O filme de Peter Jackson também é sobre isso. 

Ps.: Fui rever O Hobbit em 48fps para saber se realmente tinha alguma diferença ou se era ~pura~ jogada de marketing. Tem diferença. No começo, o filme fica um pouco acelerado, mas estabiliza essa sensação logo, no entanto, fiquei agoniado durante quase toda a projeção quando a câmera enquadra com proximidade os atores numa cena clara. Isso não só porque tudo remete muito à televisão, mas porque me lembrou diretamente aqueles filmes de mitologia grega, tipo Hércules, que passava à tarde no SBT (que eu adorava assistir, mas paciência!). Por outro lado, desde o começo é impressionante o nível de detalhismo que conseguimos enxergar, especialmente nas grandes cenas abertas com muitos efeitos especiais, em dado momento bate até uma sensação de que até ali não estávamos vendo os filmes direito. Chega o ponto de que não basta perceber com minúcia o volume dos ambientes e objetos, mas perceber com clareza os materiais de que são compostos. Ainda assim, concordo com um amigo sobre o assunto: primeiro é necessário saciar a vontade nerd e assistir normal (ou em 3D normal), depois saciar a vontade / curiosidade cinéfila em 48 fps.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Hell's Angels x Scorpio Rising x Hunter Thompson

"Os Angels são bastante prestigiados no circuito sadomasoquista, e, embora os bandidos de motocicleta, enquanto grupo, sejam constantemente acusados de terem tendências a desvios sexuais, eu desconfio que a verdade sobre a questão tenha sido definitivamente revelada numa tarde por um Angel de Frisco, que disse: "Porra, é verdade, eu aceito um boquete a qualquer hora por dez pratas. Uma noite dessas, num bar do centro da cidade, um veado chegou para mim com uma nota de dez. Ela me deu a nota e perguntou o que eu queria beber. Eu disse: 'Um Jack Daniels duplo, Baby', e ele falou para o barman: 'Dois desses pra mim e pro meu amigo', depois sentou lá embaixo na barra de ferro e me fez um boquete incrível, cara, e tudo que eu tive que fazer foi sorrir para o barman e ficar na minha". Ele riu. "Porra, e eu com quatro crianças em casa e uma vadia lá na frente dançando e rebolando com um negão qualquer. Que merda, cara, o dia em que puderem me chamar de veado vai ser quando eu deixar uma dessas bichas me chuparem por menos de dez contos".

Até que ponto os Hell's Angels podem ou não serem sadomasoquistas enrustidos ou homossexuais reprimidos é, para mim - depois de um ano na companhia constante de motoqueiros fora-da-lei -, quase inteiramente irrelevante. 

Qualquer pessoa que passa um tempo com os Angels sabe a diferença entre motoqueiros fora-da-lei e o culto homossexual ao couro. Em qualquer bar cheio de Hell's Angels, haverá uma fileira de motos reluzentes estacionadas em frente. Em um bar de fetichistas, existem imagens surrealistas de motocicletas na parede e, talvez, mas não sempre, uma ou duas Harleys repletas de acessórios de couro estacionadas do lado de fora - completas, com painéis de vidro, rádios e cestos de plásticos vermelhos. A diferença é tão básica quanto a diferença entre um jogador de futebol americano profissional e um torcedor fanático. Um está participando de uma dimensão singular e violenta da realidade, o outro está venerando algo, é um adorador passivo e às vezes um imitador ridículo de um estilo que o fascina porque é extremamente distante da realidade para a qual ele acorda todas as manhãs.

A ligação pública mais conhecida entre motoqueiros fora-da-lei e a homossexualidade é um filme intitulado Scorpio Rising. Trata-se de um clássico underground medíocre, criado no início dos anos 1960 por um jovem cineasta de San Francisco chamado Kenneth Anger. Ele nunca afirmou que Scorpio tivesse alguma coisa a ver com os Hell's Angels, e sua maior parte foi filmada no Brooklyn com a cooperação de um grupo de aficionados por motocicletas tão pouco organizado que sequer se preocupou em arranjar um nome. Diferentemente de O Selvagem, a criação de Anger não possuía nenhuma intenção jornalística ou de documentário. Era um filme de arte com uma trilha sonora de rock'n'roll, uma estranha crítica aos Estados Unidos do século XX que usava motocicletas, suásticas e homossexualidade agressiva como uma nova trilogia cultural. Quando os Hell's Angels chegaram à cultura mainstream, Anger já havia feito vários outros filmes com forte apelo homossexual e pareceu não gostar da ideia de estar tão parado no tempo a ponto de seu trabalho parecer algo tão banal quanto documentários sobre temas atuais. 

No entanto, Scorpio Rising entrou em cartaz em São Francisco em 1964 num cinema de North Beach chamado The Movie, no mesmo prédio em que Anger estava morando na época, e que anunciava o filme na calçada com uma montagem de recortes de jornal sobre os Hell's Angels. A insinuação era tão óbvia que até os Hell's Angels de São Francisco fizeram uma peregrinação para conferir. Eles não gostaram nem um pouco. Não estavam putos, mas sinceramente ofendidos. Sentiram que seu nome havia sido apropriado para uso comercial fraudulento. "Ei, eu gostei do filme", disse Frenchy, um dos Angels. "Mas não tinha nada a ver com a gente. Todo mundo curtiu. Mas aí a gente saiu do cinema e viu todos aqueles recortes sobre a gente, colados como se fossem propagandas. Nossa, aquilo foi uma droga, não estava certo. Muita gente foi sacaneada, e agora a gente tem que ouvir toda essa merda sobre a gente ser veado. Porra, você viu o jeito que aqueles vadios estavam vestidos? E aquelas motos de merda? Cara, não me diga que aquilo tem alguma coisa a ver com a gente. Você sabe que não tem". 

Anger parecia concordar, mas em silêncio. Não havia razão para estragar um novo boom do filme... E, além disso, um dos talentos mais aguçados do repertório dos homossexuais é a habilidade de reconhecer a homossexualidade dos outros, quase sem exceção. Então, o fenômeno surgiu: os Angels começaram a fornecer ao Scorpio o realismo que lhe faltava. O fato veadagem secreta deu à imprensa um elemento de extravagância para misturar com os relatórios de estupro, e os próprios fora-da-lei estavam relegados a níveis ainda mais baixos da fascinação sórdida. Mais do que nunca estavam envoltos numa aura de mistério erótico e violento: eram devassos brigões, prontos para uma relação sexual com qualquer coisa que respire e em qualquer tipo de orifício".
Hunter Thompson em Hell's Angels 

007 - Aberturas - Parte 1

Não posso afirmar que sou desde garoto um grande entusiasta da franquia 007, no máximo sentia uma breve curiosidade por um filme ou outro por causa do meu irmão mais velho ou revia, um tanto indiferente, trechos de Octopussy (1983) nas reprises anuais que rolavam no Corujão, de modo que minha relação mais interessada se confunde com a plena devoção que desenvolvi pelo jogo de Goldeneye (1995) do Nintendo 64. Definitivamente assisti ao filme por causa do jogo, o prazer não estava em qualquer afinco mínimo pela narrativa em si, ainda que tenha aprendido a apreciar bastante, mas por uma vontade de reconhecimento de tudo que já conhecia tão bem: ficava empolgado ao adentrar cada um dos cenários, muitas vezes vistos por perspectivas que não existiam no videogame; julgava a caracterização dos personagens pela relação afetiva que já tinha estabelecido; prestava atenção nas armas para saber, no jogo, quais eram as fidedignas e quais, as arbitrárias. Havia uma fagulha da sensação que meu sobrinho atualmente traduz perfeitamente quando compara os filmes de Guerra nas Estrelas com os jogos da mesma franquia: ele é fascinado pelos filmes; se passarem mil vezes na televisão, ele assistirá as mil vezes; contudo, enquanto o jogo for relativamente novo e ele não tiver chegado até o fim, não tiver zerado, ele vai continuar gostando mais do jogo, daquele jogo em específico, por estar participando da trama, por naquela batalha espacial qualquer com centenas de milhares de naves, ele ser um dos pilotos. No caso de Goldeneye, ainda havia o agravante chamado multiplayer, um sistema que possibilitava quatro pessoas jogarem umas contra as outras ao mesmo tempo nos cenários do jogo e com todos os recursos possíveis. O elemento novidade se renovava a cada disputa, porque, pelo menos eu, sempre estava aberto para o desafio de novos amigos ou efêmeros desconhecidos. Quando ficava jogando com os mesmos perdedores ruins não tinha graça alguma. A rotatividade era um princípio.

Como de praxe em meus comentários, fiz todo esse preâmbulo só para contextualizar que finalmente resolvi expandir, de maneira sistemática, minha breve curiosidade sobre a franquia do double o seven depois de Skyfall (2012), assistindo todos os filmes em ordem rigorosamente cronológica. Sinto como se meu inconsciente soubesse que algum dia iria me propor a isso, por enquanto dava um jeitinho de empurrar com a barriga como todo mundo faz com seus ~amados~, mas com o fechamento da trilogia de Daniel Craig, iniciada com Cassino Royale (2006), talvez ele volte, talvez não, o sentimento virou uma espécie de obrigação. Há o motivo específico que já virou tema de um post, mas a grande sacada está impressa numa dupla e subversiva dimensão temporal: os três filmes mais recentes se passam nos dias atuais - há personagens que sentem saudade da Guerra Fria; os vilões são terroristas com envolvimento no Oriente Médio ou hackers que montam uma espécie de batalha virtual; o próprio James Bond ainda está em fase de formação e há uma jornada pela sua história pessoal e afetiva, tema nunca abordado com tanta profundidade -, no entanto, dentro da cronologia da série, o último filme termina basicamente pouco antes dos eventos de Dr No (1962)Até a personalidade do Bond-Craig - abusado, impulsivo, grosseiro - vai aos poucos se transformando na personalidade do Bond-Connery - irônico, bem-humorado, sedutor. Os críticos tentam rebater o desrespeito temporal em busca de um realismo, por meio do conceito de reboot, como se a série tivesse sido zerada e começado de novo. Na minha visão, trata-se de um prequel, cujo tempo cronológico está vinculado ao século XXI, mas que antecipa o tempo diegético iniciado no pós-Segunda Guerra Mundial, período histórico que condiz com o nascimento e a existência do agente secreto, como uma tentativa da indústria do entretenimento britânica de camuflar a falta de prestígio do Reino Unido na geopolítica internacional.

Seja como for, assisti nas últimas semanas, todos os filmes da década de 1960 da série 007 e logo depois das duas primeiras produções já estava viciado, nunca mais vou esquecer dos personagens secundários (M., Q. e Moneypenny), de algumas das Bond Girls - espécie de Pin Ups britânicas sempre prontas para o sexo; dos inúmeros acessórios tecnológicos, dos cenários provindos dos quatro cantos do mundo ou dos planos megalomaníacos dos vilões excêntricos e geralmente não britânicos. Aliás, fiquei um pouco chocado com um racismo triturado que existe na franquia (o machismo é descarado, as mulheres inclusive apanham de Bond), não só pelos vilões serem chineses, alemães, americanos, italianos, russos, coreanos ou latinos, mas por todos eles vincularem estranhos e escatológicos hábitos, condicionantes de um psicopatia, com suas identidades nacionais. Ainda assim, fiquei especialmente encantado com as aberturas dos filmes, uma antecipação da noção mais redonda de videoclipe e uma das marcas fundamentais das aventuras do agente britânico.

007 contra o satânico Dr. No (1962)

O comentário comum sobre a abertura de Dr. No costuma destacar a primeira aparição da vinheta em que a câmera assume a visão de dentro do cano da arma do inimigo, provavelmente o emblema maior da série, ainda que possa apostar em qualquer mesa de apostas, que certamente não é o primeiro contato que a maioria dos espectadores contemporâneos possui com a sequência. A música tema ainda não havia sido incorporada especificamente nesse momento, de modo que a banda sonora é mesclada entre o tema tradicional de Bond com um divertido ska jamaicano da banda Byron Lee's Dragonaires. Ambas as canções determinam o ritmo das formas coloridas desenvolvidas pelo designer Maurice Binder, responsável por catorze das aberturas da série, inclusive por inúmeras da década de 1960, que antecipam um caminho lógico entre a Pop Art e a Psicodelia. Se mais para frente, as aberturas passam a acumular referências subliminares sobre o tema e a trama do filme, no caso de Dr No apenas funciona como um prólogo quase infantil para a cena de assassinato que abre a produção, cujas marcas narrativas centrais da franquia já estão evidentes.


Moscou contra 007 (1963)

Vou começar com duas referências: essa abertura me lembra muito da cena em que a Brigitte Bardot dança um mambo louco e sensualiza com todos os músicos em E Deus Criou a Mulher (França, 1956),  de Roger Vadim e a cena em que Anna Karina dança num cabaré em Uma Mulher é uma Mulher (França, 1961), de Jean-Luc Godard, especialmente por essa apropriação mais sofisticada e sensual da cores sobre os corpos / rostos, tais como os inicialmente famosos propostos por Andy Warhol. Daí temos só pérolas, do 007 sobre os seios balançando freneticamente ao nome de Sean Connery projetado sobre a barriga que simula um movimento sexual. Finalmente descobri de onde veio a inspiração para os créditos finais do curta Faço de Mim o que Quero (Brasil, 2010), de Sérgio Oliveira e Petrônio de Lorena, ainda que a ligação mais próxima esteja no também curta Toques (Brasil, 1975), de Jomard Muniz de Britto, que vem com um provocativo Fim escrito logo acima dos pêlos pubianos de uma mulher nua. A referência ao corpo feminino exuberante e sedutor, revela que Moscou contra 007 conta a história de um corpo que se exibe até as últimas instâncias, mas que não pode ou deve se apaixonar, uma narrativa que não tem qualquer relação com o título em português, pois originalmente o título vem de uma falsa carta de amor recebida por Bond: from Russia, with love.


007 contra Goldfinger (1964)

Eu detesto Goldfinger, apenas porque o filme é uma distração dentro da história maior, a luta de James Bond contra a organização internacional Espectre, iniciada indiretamente com Dr No. O filme anterior mostrava um número sem fim de vilões identificados por números, coordenados pelo número 1, cuja aparência era apresentada apenas pelas mãos alisando um gato, igualzinho ao vilão do Inspetor Bugiganga. Com assisti aos três primeiros em sequência, queria saber o rosto do vilão ironizado por Austin Powers, estava realmente alimentando uma ansiedade vinda da lógica de videogame, como se cada filme fosse uma fase, com um chefão incrível no final, mas o que acontece em Goldfinger é um absoluto desvio da narrativa mitológica, como se costuma falar nos seriados, por um episódio isolado, uma missão qualquer. Fiquei #chatiado. Seja como for, essa é a primeira abertura com a música tema, interpretada por Shirley Bassey, mantendo o conceito de projeção sobre corpos femininos do filme anterior. Contudo, as projeções são de cenas do próprio filme, estimulando o espectador a traçar um fio da meada pelo que lhe é minimamente apresentado. Sem contar que as cenas versus partes do corpo combinam bem, da placa mudando na boca delineada ao agente secreto fugindo do helicóptero sobre as pernas.


007 contra a chantagem atômica (1965)

Não sei se é por causa do retorno à história principal, da luta contra a Spectre, mas esse é o meu filme favorito da década de 1960 e o primeiro, nerdices.com.ativando, em que James Bond se abaixa um pouco para atirar durante a vinheta do cano da arma. Confesso que em todos esses filmes da Guerra Fria, sou fascinado pelos que trazem uma ameaça nuclear real, com grandes líderes mundiais temendo pelas suas cidades, justamente com medo da arma que não param de produzir e acumular. O que eu acho mais incrível em 007, totalmente oposto dos sensacionais trabalhos de Resnais e John Hersey, é que a bomba nuclear é quase uma experiência lúdica, assume um caráter de entretenimento puro, como se fosse uma versão adoro passar por hurricanes com meu amor da Guerra Fria. Além disso, o filme conta com um vilão maravilhoso, tem roubo de avião, tubarão e muita pegação, além várias cenas com Sean Connery sem camisa. Não aprecio isso por tesão, mas pelo fato dele ser muito peludo, tem pêlos até nas costas, e com Daniel Craig - que eu adoro também - as coisas são muito assépticas, não tem um pelinho no sovaco. Sei que reflete esse mundo de homens com pernas raspadas e tal, mas acho bom termos também essa outra referência de macho. Então, sobre a abertura, continua a influência da Pop Art, mas com o tema ~aventura submarina~, tendo como destaque a brincadeira das silhuetas femininas nadando.


Com 007 só se vive duas vezes (1967)

Todo mundo que costuma jogar videogame já passou pela situação de penar trocentas horas até chegar no último chefe, às vezes são quatro e tantas da manhã quando você chega lá, jurando que só vai conseguir terminar às sete, daí na primeira tentativa tudo se resolve facilmente. O gasto de tempo fora muito maior no segundo ou terceiro chefão lá no começo do jogo. Há nessa situação a mesma frustração que existe nesse filme por conta da revelação do número 1 da Spectre, um absoluto fanfarrão que realmente se confunde com a paródia de Mike Myers e que ainda escapa, voltando nos filmes seguintes. O grande trunfo dessa produção é tomar a Guerra Espacial como mote, tanto pelos satélites sendo sequestrados, com efeitos especiais pré-2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968), como pela clara evidência de que o Reino Unido não ocupava o velho espaço na macropolítica internacional. James Bond surge aqui como uma alternativa diante do inevitável embate entre as super-potências, como se o serviço secreto da rainha tivesse sido o real responsável, numa micropolítica que não está nos livros de história, por evitar uma guerra nuclear. Essa é a pior abertura da década, não possui qualquer influência da Pop Art, apostando em desenhos de alvos, colagens e fusões não bem sucedidas, com intuito de deixar claro que se o tema anterior era água, agora a história vai dialogar com o fogo.


007 a serviço secreto de Sua Majestade (1969)

Sean Connery abandona o papel de James Bond nesse filme, oficialmente por acreditar que já estava velho para o personagem do agente sedutor, mas também pelo cansaço imposto pela rotina produtiva da franquia e pelo assédio da imprensa (sempre ela enchendo o saco!). Ele terminaria voltando em Os Diamantes são Eternos (1971), porque o seu substituto, George Lazenby, não havia agradado os produtores, porque o público britânico não tinha aceitado bem que um australiano servisse de símbolo dos modos ingleses.  Um escocês podia, um australiano não. Há uma contradição não inocente nesse filme: mesmo apropriando superficialmente a cultura hippie, fazendo referências às viagens de LSD como experimentos do vilão, Bond está muito mais casto, termina se apaixonado e casando, atitude totalmente discrepante da posição de Sean Connery, afinal ele passava a impressão hedonista que estava comendo não só as personagens, mas as atrizes e as assistentes técnicas em geral. A abertura  faz uma retrospectiva dos outros filmes através de inúmeros personagens que não o próprio agente, brincando vez ou outra com o formato de uma vagina sob a voz marcante de Louis Armstrong.