sexta-feira, 31 de maio de 2013

Poema de si

Ao lado da pimenta e do conhaque,
brasas, marchas, vacas, avalovara,
montanhas congeladas pelo chá de alcaçuz.

Ian deitou no meu peito,
quente, colado, nevado
e pediu um breve poema de si.

Então, escreveu no papel:
"seja coerente"
e eu prontamente respondi:
"não seja"!

Zefini.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

A Primeira Noite de Tranquilidade (Itália, 1972), de Valerio Zurlini

(Publicado originalmente no Filmologia)

Ao longo de irremediáveis visitas cinematográficas, mantive certa desconfiança desses filmes, cuja estrutura narrativa é absolutamente costurada – ou submetida – por uma espécie de soberania do acaso, fazendo com que o roteiro seja arquitetado através de uma estrutura de coincidências, um malabarismo - por vezes patético - de acontecimentos conectados: são os futuros casais que trombaram dez vezes antes de se conhecerem ou os desconhecidos que as situações e o tempo insistem em postular como inimigos. Alguns espectadores ainda ficam ansiosos, torcem os dedos para uma olhadela à esquerda, um acidente de trem, a desistência de um voo. Seguramente esse não é o caso de A Primeira Noite de Tranquilidade, produção em que Valerio Zurlini intensifica sua postura existencialista, por meio de um homem que, mesmo afundado na melancolia e numa angústia dilacerante, continua enfrentando o mundo, escolhendo cidades apenas porque ainda não as conhece, certo de que acaso e destino são conceitos que se levados ao paroxismo se tornam indiferentes. O cineasta italiano retorna a cidade de Rimini, um lugar entre os lugares, e diferente da estação de Verão Violento, recorre ao inverno como metáfora contextual para embalar a íntima condição de um homem entregue ao tédio, homem que adentra a neblina ao som rasgante de um trompete, descobrindo nas ruínas de uma casa a poética de um passado renegado, mas não completamente ausente. Trata-se, em parte, do professor de literatura interpretado por um Alain Delon mais velho, mortificado, assim como, em parte, trata-se do próprio Zurlini no fim de uma carreira pouco reconhecida, supostamente sem infâmias ou louvores, cujas caminhadas pelas brumas, num ímpeto sem sentido das coisas, são contornadas por um efeito exasperante de finitude. 

Na história de amor – ou apenas de estímulo do tesão como processo antidepressivo – entre um professor e sua aluna, dois animais feridos, Zurlini descarta a problemática do tabu do relacionamento, por um jogo de poder e sedução, sem clareza de qual lado é o mais forte. O cineasta definitivamente evita o clichê ~ele mais velho, ela mais nova~; ~ele professor, ela aluna~, aliás, um dos grandes clichês no cinema e na literatura, sem dúvida. Descarta também uma discussão política evidente ou panfletária – e talvez por isso, o filme seja mais instigante – ao revelar um protagonista supostamente apolítico, desinteressado, farrista, sonolento, mais preocupado com o debate sobre o belo em versos de Petrarca. Na falta de vontade de tecer argumentos mais específicos, coloca até grosseiramente socialistas e fascistas no mesmo saco, sem distinções. Assim sendo, como um grande tratado sobre a conjunção de três palavras guarda-chuvas – vivência, sobrevivência e existência –, o filme não desemboca num tedioso discurso filosófico, pois apesar de recuperar autores conhecidos, Camus e Sartre, toma o melodrama, aqui sem grandiloquência ou crises de choro, como seu verdadeiro desenho de expressão. Daí frases impiedosas como “não foi sua beleza que me atraiu, mas o desconforto que tem dentro de si, sua melancolia sem fim, não posso suportá-la” convivem em harmonia com uma trilha sonora típica do gênero, cafona e exagerada, por vezes histérica, ao emular as emoções dos personagens para uma melhor apreensão afetiva dos espectadores. Ainda assim, a estratégia de Zurlini dissocia sua diegese da projeção clássica do público, afinal, por mais imobilizados pela tristeza, seus personagens não se rendem às lágrimas, não por um torpor de insensibilidade, mas para não abrirem qualquer prerrogativa de redenção completa ou libertação do corpo. A impressão de morte está sempre à espreita.

Dominici, o professor, surge na escola sem qualquer projeto pedagógico, sua postura sublinha mais uma opção na falta de opção, a certeza de que ainda precisa decidir mesmo aportado na desistência. No primeiro dia de aula insinua seu espaço para os alunos dizendo que não quer obrigar nada a ninguém, quase consciente da impossibilidade de ensinar, negando seu papel como “mestre que, ao mesmo tempo, aparece como paradigma filosófico e como agente prático da entrada do povo na sociedade e na ordem governamental modernas”. Como o mestre ignorante do filósofo francês Jacques Rancière, Zurlini parece estar atento ao debate que coloca em dúvida o ato de receber a palavra do tutor – a palavra do outro inundado de sabedoria – incitando um caminho entre o testemunho de igualdade e o gesto acentuado de distância. Só que o movimento do personagem de Delon é destituído de desejo, ele apenas está ali, sem intenções ou projetos a médio ou longo prazo. Diante do garoto revolucionário de desempenho exemplar, inteligente, raivoso, que provavelmente abandonará sua militância política pelo conforto econômico, e da garota de beleza submetida à angústia, arisca, felina, que provavelmente desistirá da escola para se dedicar a um casamento malfadado com um homem rico, o professor insiste na liberdade como um problema, ajustando a falta de liberdade como plataforma para a promoção dos momentos de alegria. A felicidade não pode ser um estado, apenas um estágio. Aliás, o filme condensa muito bem a forma paradoxal como as pessoas, no espaço externo ao do colégio, usam o vocativo professor durante uma discussão sobre assuntos relevantes ou irrelevantes: há ali – e confesso que já passei pela situação – uma estranha mistura de menosprezo e respeito. 

Zurlini desenha personagens encarcerados na condição apontada durante a visita de Dominici e Vanina a um parque aquático: enquanto ela carrega um lamento pelos golfinhos presos em tanques, ele relata que “se forem soltos no mar, vão sentir falta da piscina, do conforto, do almoço, do café da manhã fácil”. A situação lembra sem esforço, inclusive, o final de A Mulher das Dunas, quando finalmente o rapaz consegue fugir da clausura, encontra o mar depois de viver no deserto quase sem contato com a água, mas decide voltar para o cativeiro, fascinado pelo balde em que depois de muito esforço conseguiu reter alguma quantidade do líquido. A Primeira Noite de Tranquilidade, expressão usada pelo protagonista para descrever a morte, uma noite sem sonhos, sem remissões ao passado e suas fantasmagorias, revela o ato de viver sua vida como o ato de suportar sua vida. A narrativa se esgueira desde o princípio como uma tragédia. Não temos um herói necessariamente deprimido, mas um tanto indiferente em relação ao mundo e em essência a si mesmo, sempre com seu cigarro na boca, passando pouco tempo em seu apartamento pequeno, decidido a ficar longe de sua mulher adúltera e suicida, de quem não conseguiu se separar por conta da posição permanente de quem sente falta de vontade por todas as coisas. A proximidade da angústia sem ser angústia, o corpo desgastado de Alain Delon, olheiras e ausência infindável nos olhos, se inscreve na ideia de que “a validade de um sentimento não existe, a validade de uma ilusão não existe, não há idealismo que se sustente, não há nada que esteja fora da amarga sobrevivência”, como definiu o próprio cineasta numa entrevista. 

Além das sequências de passeios de Dominici, seja com Vanina para conhecer uma pintura renascentista, com o professor fazendo uma leitura inspirada por Barthes, seja com o amigo Spider para incutir um passado que se anuncia em tons bíblicos, o grande momento do filme está na alternância campo contracampo da cena da boate, uma alternância fatalista de uma desilusão árida. O cinema de Zurlini se funda como o cinema do olhar oblíquo e da troca de olhares presentes. A sequência resplandece em outros momentos da carreira do cineasta, como em Quando o amor é Mentira e até mesmo em Mulheres no Front, mas o que mais impressiona na dança de Vanina sob as luzes da pista enquanto encara o professor por cima dos ombros do futuro marido, é também o jogo de intensificação e regressão do olhar, a primeira instância sempre sob a luz vermelha e rápida, a segunda sob todas as outras cores um pouco mais lentas. Se A Primeira Noite de Tranquilidade é naturalmente um filme associado ao fator geográfico, de um inverno numa região costeira melancólica povoada pelo rancor, pela dissimulação e pela violência, termina sendo mais ainda, como definiu Zurlini, “a história de um homem que tem sempre uma relação de morte com os outros e que encontra a juventude, mas justamente uma juventude que esconde, na realidade, a morte. É como um romance popular velho, tal qual o mundo”. Irrompendo quase de maneira irônica, o final projeta uma possibilidade de mudança, do personagem encontrar o desejo, criar interesse no mundo, mas traz a morte como elemento desonesto, que no meio da falta de sentido, obedece à, até então negada, soberania do acaso. Os créditos surgem sobre a inexistência de pontos de fuga.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Mulheres no Front (Itália, 1965), de Valerio Zurlini


(Publicado originalmente no Filmologia)

Vou me dar ao direito de desenvolver esse ensaio com uma longa digressão: não lembro exatamente quando começou minha curiosidade pelas guerras, talvez quando encontrei, ainda pequeno, cascavilhando na biblioteca do meu pai, um imenso livro de fotografias que se pretendia uma história ilustrada da Segunda Guerra Mundial. Hoje, folheando a publicação editada por Charles Herridge, notei como minha atração inusitada recaía sobre os líderes embriagados em sua própria compostura; paisagens assoladas, prédios incendiados, ruas ocupadas; armamentos, aeronaves, embarcações; uma mistura de austeridade, tecnologia e ruína. Sentia-me, também, enfaticamente seduzido pelas expressões humanas anônimas do conflito, soldados ora cabisbaixos, ora festivos, ora mutilados; prisioneiros famintos, refugiados arrasados; mulheres assustadas, grávidas, com crianças desnutridas no colo. Seguramente posso afirmar que esse conjunto documental ao registrar as demandas das inúmeras batalhas e do desastre humano, conseguiu materializar no meu imaginário a experiência, o clima, a atmosfera do que significava um evento histórico e imprimir em definitivo o semblante de seus personagens centrais. Nunca vou esquecer das terríveis supostas fotos da morte de Mussolini. A partir desse contato primeiro, o interesse pelo acontecimento guerra só cresceu, parte de minha reclusão na pré-adolescência foi dedicada ao estudo - na Barsa - da história da humanidade pela perspectiva de fatos similares – Guerra do Peloponeso, Guerras Púnicas, Guerra dos Cem Anos etc – mantendo uma atenção especial para o ponto de partida e mais devastador acontecimento militar do século XX. Aliás, ainda sinto uma imensa atração pelo tema, dia desses comprei uma enciclopédia com doze livros da evolução de veículos militares através dos conflitos e não consigo me desvencilhar da empáfia que me suga quando fico sabendo de algum confronto novo no quinto dos infernos. Confesso que até mesmo quando escolhi jornalismo, graduação que nos primeiros semestres cursei ao lado de relações internacionais, pretendia seguir carreira profissional como correspondente em áreas de conflito, estranhamente inspirado por outro corpo de imagens, vistas durante a infância pela televisão, em meados da década de 1990.

Se não tenho lembranças da Guerra do Golfo por uma questão de idade e depois o conflito me entediava porque as imagens lembravam os jogos mais básicos do Atari, tudo era muito distante e seguro; a Guerra da Bósnia perpetuou imagens na minha memória, pois havia uma imersão ampliada, as câmeras estavam no meio das batalhas, as balas zuniam captadas pelos microfones, pessoas eram baleadas dentro dos planos, jornalistas em passagens ao vivo precisavam lutar por suas vidas, prédios eram quase aleatoriamente atingidos por mísseis. Havia todo um agenciamento da morte transmitida para o planeta inteiro, situação já insinuada pelas fotografias da Segunda Guerra, especialmente numa fotomontagem propagadística de Hitler sorrindo num campo de milhares de russos mortos ou numa captação aérea em Hiroshima após a bomba, mas nada com tanto realismo e proximidade das imagens coloridas da TV. Por algum motivo que só a terapia um dia poderá responder, com oito ou nove anos, mal entendia aquela complexa correria, mas sentia um desejo de acompanhar tudo ainda mais de perto: só sabia vagamente que o desmembramento da antiga Iugoslávia tinha transformado em inimigos, da noite para o dia, antigos vizinhos, literalmente vizinhos de rua que haviam compartilhado a mesma vizinhança por décadas, mas que tinham sido inflados por suas origens étnicas e religiosas diferentes.  Recentemente, lendo Uma História de Sarajevo e Gorazde, dois livros do jornalista em quadrinhos Joe Sacco, consegui formalizar o impacto da aproximação precoce diante de uma ansiedade compulsiva dos profissionais de comunicação pela tragédia, não os via como urubus em busca da carniça ou vítimas do forçado ímpeto investigativo empresarial, mas como agentes que, naquela situação, soltos num campo em chamas, não podiam se manter neutros para sempre, pois o flerte com o perigo os obrigava a escolher e lutar por um dos lados. Se as imagens do livro, por mais fortes que fossem, representavam para mim uma ideia de imagens históricas, portanto, grandes, imutáveis, definitivas e distantes da minha realidade na minha vila na minha Várzea; as imagens vindas dos Balcãs surgiam num regime ontológico distinto, como se fossem imagens privadas, não necessariamente históricas, despertando meu interesse não pela história da guerra, mas pelas histórias ocorridas durante a guerra.

Antes que o tédio arrebate com sua descortesia alguns leitores, atento que a longa digressão-introdução se justifica, pois essas lembranças nunca tinham me ocorrido com tanta intensidade assistindo um filme de guerra como diante de Mulheres no Front, mesmo já tendo intimidade com a maioria deles, inclusive escrito sobre inúmeros. Foi como um passado desobediente, inebriado de fugas, reerguido diante dos  olhos. Não obstante, antes de prosseguir, há, ainda, uma terceira e última lembrança para finalizar esse panorama pessoal, para além das imagens históricas da Segunda Guerra Mundial e das imagens privadas televisivas da Guerra da Bósnia. No final da minha infância, minha mãe, aproveitando o ensejo de meu interesse primordial pelo tema, começou a contar histórias de filmes de guerra como histórias de guerra, depois de algum tempo viria a descobrir que se tratavam de produções americanas sobre o Vietnam e produções italianas, mais ou menos distorcidas em suas linhas gerais. Havia naqueles contos da noite a junção das duas dimensões apreendidas inicialmente de maneira distinta e metodicamente disjuntiva, a dimensão privada estava dentro da dimensão histórica e vice-versa, as lágrimas pelos amigos perdidos escorriam depois do Dia D, a insônia pelas bombas noturnas acometiam durante a destruição de Dresden. Quase em todos os casos, suas versões ressaltavam a situação das mulheres nos conflitos, sempre descritas como figuras cientes de que não podiam confiar em ninguém e passíveis dos mais terríveis abusos. Ela costumava dizer - evocando vietnamitas estupradas, italianas estupradas - que "na guerra, a mulher está em guerra contra todos os exércitos". Não posso afirmar se algum dia, minha mãe chegou a comentar exatamente o filme de Valerio Zurlini em questão, tenho a suspeita que sim, mas lembro bem dela rememorando Duas Mulheres (Itália, 1960), de Vittorio De Sica, película que ilustra bem o sentido da frase materna. Acredito que através dessas três experiências, descritas aqui de forma quase didática, apreendi a intenção destacada no depoimento de Zurlini: “lendo os clássicos entendi quanto é bela a fusão entre uma vida privada e os acontecimentos históricos. A minha profunda formação tolstoiana se revela igualmente nesta pequena equação: uma história privada é engrandecida, e se torna extraordinária, isto é, necessária, se tiver como fundo um grande acontecimento histórico”.

Ambientado durante a conquista da Grécia pela Itália com apoio da Alemanha nazista, uma nova intervenção militar que retoma vínculos coercitivos entre duas nações de ligação cultural milenar, Mulheres no Front começa com corpos estendidos no chão, numa época em que responder honestamente perguntas - como uma vez se referiu Dilma à Ditadura Militar - era perigoso. O filme distribui ao longo dos atos um amplo contexto para acompanhar a jornada de doze prostitutas, conduzidas por três tenentes de intenções paradoxais – um melancólico, um bobo violento e um fanfarrão materialista – no intuito de deixá-las em bordeis para satisfazer soldados italianos em batalha. A metáfora do calvário é até bastante óbvia, contudo, o filme consegue instaurar um complexo cenário  do limite como situação cotidiana, não só pela paisagem física, dos espaços destruídos, inseguros, abandonados, mas pela paisagem violentada dos rostos: no cinema de Zurlini, a marca de um trauma pessoal se transforma na marca da história. Durante uma das primeiras cenas, na apresentação das figuras femininas, um dos momentos antológicos da filmografia do cineasta, um travelling atravessa um vasto salão, capturando as mulheres e seus olhares lascivos, sombrios, sonhadores, de maneira frontal em posturas e pontos distintos do quadro. O painel expressivo da sequência é desorientador. À primeira vista, podemos achar que se trata de mais um filme tardio neo-realista, a prostituta novamente como modelo de heroína, numa história passada durante a guerra. Todavia, se o movimento cinematográfico tinha nas suas origens, a vontade de mostrar que os italianos não cometerem tantas atrocidades, revelando as lutas de resistência contra Mussolini no interior do país ou os impactos póstumos do conflito na sociedade, Zurlini inverte a situação, revela os Camisas Negras, adentrando justamente no labirinto que fora deixada de lado, que fora apagada da memória cinematográfica de seus conterrâneos. Mais que isso: Mulheres no Front traça uma incursão pela desesperança das prostitutas e seus condutores, conta não a história da guerra, mas a história da intimidade na guerra, dos anos perdidos na guerra, das necessidades e sonhos na guerra, amplificando o microcosmo por meio da melancolia dos contatos mínimos e dos gestos aparentemente distraídos.

Acontece que num mundo dominado pelos homens, a guerra só pode ser pensada como o universo da estratégia, do domínio, estimulando o cineasta a se dedicar à figura das mulheres, presas ao universo da tática, que, para Michel de Certeau, significava a arte do fraco que utiliza, manipula e altera os mecanismos de dominação, subvertendo-os. A tática diferentemente da estratégia não é capaz de cavar trincheiras em todas as esferas de poder, não é capaz de lutar de igual para igual, afinal sua especificidade é a de exercer pequenas fraturas, muitas das quais desordenadas, funcionando quase como uma “arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras do espaço opressor”. No filme, essa situação permeia toda narrativa como uma forma de sobrevivência: quando um grupo de homens bêbados ameaça invadir a força o lugar em que as mulheres estão passando a noite, uma delas, toma a frente da porta e avisa: “uma de nós tem sífilis, mas não vou dizer qual”. Todos terminam desistindo. Não se trata de um discurso machista sobre a fragilidade ou uma defesa feminista, Mulheres no Front trata mais da resistência sem atravessamentos ideológicos claros, vai costurando um embate entre os dramas pessoais, desses que jamais entrariam nos livros convencionais de história, focando na relação entre o tenente melancólico e a prostituta mais arisca. O filme funciona como os trens na guerra, como uma derradeira noite de amor, alimentado por elementos e ímpetos de despedida, conjurando um sentimento tenro que vai se degradando. A cena final, provavelmente a mais bela de todos os filmes de Zurlini, mostra os dois recém amantes em sua primeira e última noite de amor, ela então solta uma longa sequência de palavras, desconsiderando qualquer possibilidade de se verem novamente, de terminarem como nos finais felizes tão comuns: “mas nós dois, estamos aqui, temos a mesma idade, mas não a coragem de olharmos nos olhos. Fomos humilhados. Falamos como duas pessoas velhas e em poucas horas teremos de nos despedir. Quando tudo tiver acabado, quem nos restituirá todos estes anos? Poderá ser esquecido? Eu te amo, mas falando isso nessas condições é como se estivesse orando por um filho nosso que tenha sido morto”. Na sequência, seguem caminhos distintos. Ela não olha para trás.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Coração de Bandido

"Bateu a estranha quando entregaram o café de nós. Eles ficaram olhando para mim com um jeito estranho. Eu levantei, ele levantou também e estarrou para o meu lado. Eu estarrei para o lado dele também, daí veio o outro por trás e deu um negócio na minha cabeça. Aí eu fiquei no domínio deles, eles me amarrou, amarrou o meu pé, meu pescoço e eu não tive mais domínio de mim. Aí eles fez o que fez e eu desmaiei porque o lençol tava apertando. Já tirei cadeia com Michael em Paratibe, tive rixa com ele de lá. O cara não entende não, é maldade mesmo, coração de bandido é debaixo do pé, irmão, é debaixo do pé".

Depoimento do rapaz estuprado por seus dois companheiros de cela na Funase do Cabo de Santo Agostinho.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Drinks

Daí o bairrismo senil recifense metido a cosmopolita decidiu nomear um drink ~típico~ da região, whisky com água de coco, por meio de um ~concurso cultural~ com sugestões dos internautas. Passadas algumas semanas, os organizadores chegaram, então, aos trinta nomes mais votados, dos quais vão sair cinco finalistas e, depois, o ~grande~ vencedor. A lista, atualmente em votação, inclui referências e expressões como 'casa grande e senzala', 'frevo maluco', 'leão do norte', 'on the frevo', 'sabor da veneza' e tantas outras pérolas. Desde o exato minuto que coloquei os olhos nessa iniciativa, difícil chamar de ~concurso cultural~, fico só imaginando uma mesma cena de diferentes maneiras: uma pessoa de terno num casamento, numa formatura ou num bar, chamando o garçom de longe e pedindo ao vê-lo se aproximar: "amigo, você traz um casa grande e senzala, por favor". Sempre me surpreendo como a minha cidade consegue renovar sistematicamente seu status de metacidade.

terça-feira, 14 de maio de 2013

desconsolo do gato

Olhando de lado,
como bicho aninhado,
salto e abrevio.

À espreita, cismado,
como num pulo arriscado,
corro e arrepio.

Durmo antes da hora.